sexta-feira, 30 de março de 2012

Publicou um beijo no céu

Evening at the window - Chagall

Sua vida estava em obras, como também sua casa, como seu quarto que já não reconhecia, onde já não tinha paz. Já há tanto tempo, muitas semanas, meses até aqui. Nunca vira tanta coisa, nem tantos fora do lugar, ela mesma, naquele momento, onde estava e pra onde iria?  Tinha mergulhado severamente em todas essas coisas que a vida obriga a fazer, seu trabalho realizado de forma diligente, sem faltas, indo pra longe sempre que preciso, se ausentando ainda mais de si, se desdobrando entre algumas decepções e o alento de pequenas fugas pra seus sonhos mais improváveis. Neste curto espaço de tempo vira suas últimas fichas se perderem num jogo que sequer entendia as regras. Não percebera que a rodada havia terminado quando ainda era o mais simples começo de tudo. Era injusto, o ano mal começara. Nessa noite tentava não pensar, era uma sexta à noite, hora de dar alegria pra alma, de receber cócegas no coração, sorrir. Parou de se importar com o recente isolamento dessa situação esdrúxula, sem ninguém, sem dinheiro e no lugar errado, longe dos seus sonhos. Olhou em volta no que restava em mínima ordem no caos de seu quarto. Vira os livros que ganhara de presente um dia desses e perderam-se entre tantos compromissos vãos. Tomou um deles, se aninhou na varanda e abriu uma cerveja, afinal, era sexta à noite... Logo na retomada das primeiras páginas, um sorriso se desenhou discreto em seu rosto, reencontrara algo de si abandonado, sabia lá quando. Queria dividir aquilo, não sabia como, mas talvez soubesse com quem. E publicou um beijo no céu.


terça-feira, 27 de março de 2012

Cedo

Chagall - The Yellow Room
Acordou cedo naquele dia, na verdade, pouco dormira. Havia um plano: menos coisas pra fazer, muito menos pra lembrar. Não que as coisas sumissem assim, elas nunca somem, se misturam com o tempo enquanto passam. Mas nesse dia seria tudo diferente, só um permitir, um sorriso longo, um descanso e uma comemoração. Pouco tempo pra tanto, pouco tempo até aqui, muito menos até ali, quando o dia acaba. Era comemoração, não lembra de que, só de que precisava disso, de uma fuga, do que sabia e não sabia da vida, de si e mais ainda, dos outros. Amara? Sabia amar? Amaria? E se perguntou sobre o que era querer. Não queria, estava ali blasé, vendo o Sol que nascia. Mais fácil escrever versos, mesmo que ruins, e fingir vários quereres, desconcertar-se no sentimento de distância e sonhar em preto e branco em novos amanheceres de planos que se queriam apenas mais felizes.

quinta-feira, 15 de março de 2012

terça-feira, 13 de março de 2012

Poesia 31: Sonho Estranho

Cartier Bresson
Um dia qualquer ela acordou de um sono estranho.
Neste, o sonho mais do que nunca lhe parecia com a vida.
Essa vida assim, de viés, impressionista, daltônica, apressada, randômica.
Viu seu herói morrer, seu amor não vir, um sol se por e uma chuva infernal não querer acabar nunca.
Quando acordou sentira dores pelo corpo e gozou sobre um outro eu na qual não mais se reconhecia.
Nesse estado de torpor se encantou com toda a beleza que declinava com o Sol daquele dia. Rebelou-se, chutou todas as latas que pôde e assobiou.
E ao sair por ai, sem se sentir, sem peso, coseu delicadamente a luz macia de uma manhã sem fim. Cantou enquanto o fazia.
E sua melodia encheu o ar, ao mesmo tempo que floriram uns tantos novos jardins que estavam há tempos por nascer.
E seguiu assim por esse dia, que não sabia ser sonho ou se sua vida na qual sonhava que vivia.
Sabia, havia coisas por fazer, umas duas ou mais poesias, umas tantas outras trapalhadas, um romance talvez... quem haveria de saber?
E uma certeza, nenhum sorriso se vem sem que o sonho breve que é vida, ganhe uma folga pra sonhar-se a si mesma.
E se permitiu partir, rompendo o dia com ternura, inquieta que era, pra ver o que havia do outro lado.



domingo, 11 de março de 2012

Poesia 30: A Garota de Verde

Mulher de Verde. Van Dongen, 1911.

A garota de verde que eu não esperava
Naquele quadro, naquela praça
Tão caramelo, jambo ou mesmo açaí?
Não importava, linda, quase não parava
Ia, as vezes vinha, as vezes se ria
Nada a segurava
Intrigava-me vê-la
Desafiava-me ouvi-la
Num mesmo momento, mesmo que curto
Impossível esquecer seu passar
O que dizer? Não precisava
Seu olhar brilhante
Seus olhos escuros
Qual sua fronteira,
Como se embalam seus sonhos,
Garota de verde que passa sorrindo?
Menina verde, que tão rápido passou
Sentou aqui do meu lado
Disse-me quatro ou cinco coisas incríveis
E deixou um mundo mais feliz em sua passagem


  Van
11.03.12

quarta-feira, 7 de março de 2012

Poesia 29: ...E CHEGADAS

Comigo ninguém pode (Foto: Van)



“É doce morrer no mar” (Caymmi)

Vê-la! Assim, um único e definitivo fato
Não conseguiu mais desviar o olhar
Ao aproximar-se
Sua cabeça adernou com a tempestade
Não haveria risco em naufragar
A sorte dos marinheiros é morrer ao mar
Queria citar Pessoa
Mas mal conseguia pensar
Chegou-se com a fúria desesperada dos náufragos
Bebeu torrencialmente sua alma
Goles colossais daquela água turva
Guardada
Há séculos
Quando ela chegou
Nunca mais quis voltar ao porto

Van
07/03/2012

terça-feira, 6 de março de 2012

Poesia 28: PARTIDAS

Barco de pesca em Tambaú (foto: Van)


PARTIDAS

Vi dentro dos teus olhos
Mares abertos e revoltos
Vi enquanto cegava de teu sol
Lembro agora
Onde nada tinha
Perdi-me ainda mais
Tomei gosto pela chuva que não vinha
Não devia
Tremi com frio quando o sal foi lavado do meu corpo
Tentei nadar e afundei
Sabia que não haveria chegada
Que o pé não dava
Não alcançava
E que a jangada dançaria com as ondas até virar
E me lancei, dançando uma dança estranha
Sob uma luz azul
Que a última noite trouxe
E percebi que não há beleza em se ir
E que
Pra partir nesse barco
É preciso sorte, além de arte
E um outro Sol
E quem sabe
Reinventar o segredo desse mar


                                                   Van

domingo, 4 de março de 2012

Poesia 27: História de um amor

Foto: Evandro Teixeira (fonte: aqui)

HISTÓRIA DE UM AMOR


Pela estrada agreste dos nossos corações
Pelejo minha amiga a sua atenção.
Me conte delicadamente feito canção
O seu melhor sonho ao luar,
Me conte maravilhas
De como se juntos estivéssemos por ir.
E se sobre a estrada desses ermos
Há um luar,
De delicadeza e lágrimas,
Da mais bela nostalgia ele se fez.
Me conte de mansinho
A história de um amor,
Que cresceu e se criou
No mesmo berço
Que deus embalou
Toda maravilhosa graça e simplicidade.
Me fale de esperança,
De suor de quem sofre sobre a terra,
De povos longínquos e viagens desejadas
 - toda a atitude criadora -
Pelos mesmos confins
Que a bonança abandonou.
Me conte com ligeireza e precisão no nosso próximo olhar,
E feito trovador da caatinga do sertão
Me conte o que me faz prender a você,
Redescubra onde é o começo,
Me ame por todo o meio,
Vivamos pelo amor ao final.

                                             Van 
                                               15/04/96

Para um domingo mais doce!

Foto: Juliana Seravalli
"Come chocolates, pequena; 
Come chocolates! 
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. 
Come, pequena suja, come! 
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! 
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, 
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida"


                                                                                    (Álvaro de Campos - Tabacaria)


BOM DOMINGO!


PS: com carinho pra quem está longe.