terça-feira, 31 de julho de 2012

2010 - The Year We Make Contact

Vésperas de Aniversário

Gustav Klimt
Foi difícil voltar aquela casa depois de tantos dias. A porta fechada, grade, cadeados, as plantas do lado de fora... um pedido água dolente, como o dele. No hall, frente a frente com o número do apartamento na parede, hora de virar a chave, fazer funcionar aquele velho som de abertura, o molho de chaves barulhento, o chaveiro com um cãozinho basset de madeira e de grande a abaulado nariz preto batendo insistente na porta a cada volta, fazendo vibrar todo o metal. Abrir aquela o porta o envolveu numa máquina do tempo instantânea, o cheiro das coias deixadas ali, esperando por um tempo que não passaria mais. Cada coisa deixada sobre cada canto, os cantos dos quais nunca mais sairiam da memória dele. Sofá, cortinas, a mesa. O tapete em frente à TV, já não voava. As roupas espalhadas sobre a cama, diziam de alguma desordem no mundo, algo irrecuperável, caótico, no mínimo detalhe, de que não deveriam estar ali. Seus passos erravam lentos entre cada cômodo, cada metro era traduzido em sua mente por longas lacunas de sentido, perguntas sem resposta sobre o porquê das coisas, sobre a forma como o nada podia se manifestar de forma tão imperativa, assim, de onde nunca se esperaria. Tentava responder pra si mesmo o que buscava naquele momento, o que teria ainda para encontrar. Pensava nas velhas questões, impasses e pequenas aflições de outrora. Dedicava-se em pensar, como que enganando a urgência de se manter lúcido diante da tragédia, como as idas e vindas da vida pareciam marolas desde que ela saíra de sua vida. Era véspera de seu aniversário, isso não costuma ser fácil pra ninguém. Um mês atrás era o dela. As pessoas costumam não gostar das vésperas de seus aniversários. Não costumava dar bola pra esse tipo de pensamento. Mas os últimos anos não foram particularmente amistosos com ele. Perdeu pessoas preciosas, não soube gerir crises e pensou seriamente na sua capacidade de gerenciar as demandas da vida. Aniversários definitivamente não traziam boas novas, não pra ele, um fim disso, um final daquilo, um adeus praquilo outro. Só a saudade e outros sentimentos confusos continuavam como ecos de explosões colossais, big bangs originais nos quais as pessoas se perderam em meio as mais vorazes torrentes de demandas que o fluxo randômico desse "tudoemquanto" pode produzir. Sentou-se no sofá, ao olhar pra samambaia morta na varanda viu um pequeno pé de alguma erva daninha que crescia apesar da desolação, não lhe veio nenhuma metáfora besta sobre a vida que continua à sua mente. Pensou apenas no quanto a má sorte, a maldade, e o que é mais vil nas pessoas pode apagar o que é belo, pra sempre. Pensou novamente no seu aniversário, em algum filme de Wood Allen, no box que não ganharia e no aniversário de Chico Buarque. Não havia mais o que pensar. Levantou-se e caminhou para a porta. Não conseguiu olhar pra trás nesse momento, mesmo fingindo toda força do mundo. Seus olhos traziam as mais sinceras e duradouras lágrimas que alguém podia verter. Precisa de uma cerveja, de música e de alguém que lhe sorrisse ainda. Precisava encontrar vida onde quer que fosse.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Quando a chuva parou, o mar

Intermares, Cabedelo, PB
Chovia num dos dias em que ela apareceu em sua vida, sim, foram vários. Logo chuva, de que ela tanto desgostava. Chovia naquela época do ano, como chovia por dentro de sua casa, chovia por todos os cantos através dos quais era possível sentir o mundo úmido. Nesse dia o tom ao telefone era outro, a fala apressada queria sair, ir desembestada ao encontro desse desconhecido, dar aquele passo espacial no vazio, fora da nave, explorando com ansiedade e cautela o litoral onde aquelas ondas arrebentavam. Na hora de vê-la, ele, quase o embaraço: que palavras usar? O que podia dizer?  No dia em que se encontraram, os assuntos pareciam ganhar sabores de coisas repartidas há muito tempo. Logo, entre uma confidência e outra, colo, afago, abrigo, olhar. Escorrer devagar a mão em seus cabelos e tentar acreditar na realidade da cena. Naquele dia não caberia nenhuma amnésia, eles lembrariam. Naquele dia onde tantas confusões povoavam suas cabeças, ela, sempre ela, disse as palavras mágicas que nunca sairiam de sua cabeça.
E a chuva parou. Foram felizes.
Aprenderam a se dar felicidade.

Naquele silêncio o mar era só deles.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Dan Nakagawa - A Nossa Vida Toda

A moça das fotos

Marc chagall -  Aleko and Zemphira by Moonlight
Um dia qualquer de sorte, numa tarde de sábado, vendo aquela moça e sua câmera. Só restava a ele perder-se em pensar nas sutilezas agridoces de estar por ali, à toa naquele gramado enquanto ela fotografava. Distante a moça sorriu, apanhada sem proteção, por dois segundos, em pleno ato de capturar a alma dele pra sempre. Ao final, além da foto, teria dele também um suspiro. Quanto a ele, só ao longe, coube-lhe ficar com uma imagem de filme a se desenrolar mil horas depois, na qual, numa de suas imprevistas continuações aquela bela moça de compridos cabelos pretos lhe devolveria sua alma através de um beijo. Para, apenas, levar-lhe no ato o resto de seu coração.


terça-feira, 24 de julho de 2012

Imprecisões afetivas

Na Estrada (Walter Salles)


Meu último poema de amor não deveria ser escrito assim, quando seu olhar já não era uma interrogação, e o meu peito, velho lugar de divagações imprecisas sobre o quase nada das sobras de cartilhas, estivesse vago de saber se existia. Só poderia dizer-lhe de disposições vãs sobre músicas que nunca escreveria por não saber fazer música. Diria também do sobre o que você espera e como devolver-lhe o caos à vida, de desmontar o relógio com ferramentas delicadas feitas a quatro(centas) mãos. Diria pra dentro e com toda força, da coisa imprecisa que antes de fazer-se sentir já buscava a sua outra numa parte remota de um  planeta morto. Meu último poema de amor seria um texto, que se escrito, faria os amantes desistirem de viver, ao mesmo tempo em que te convenceria que valia a pena parar tudo e querer o lado impossível, no qual suas loucuras fossem a cama onde, entorpecida de álcool e restos de velhos amores que nunca te deixaram, sua paixão só seria surpreendida pela velocidade a qual todo fim parece trazer consigo.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Poesia 34 - Eu Não Estarei


 "I get by with a little help from my friends" (Foto: Juliana Seravalli)

Na minha cabeça
Meu bem
Não há como estar
Não há mais o que lembrar
De você

E nessa confusão de tristeza
E distância
Só quero dizer
Que ainda gosto de você

Minha garota
Vou lhe ligar
Sinto, mas disso não vou lembrar
Porque hoje
A cana pegou

Mas, se me ouvir
Saiba que quando acordar
Se quiser voltar
Baby,
Eu não estarei

sábado, 21 de julho de 2012

"E não viveram felizes para sempre"

conto, Czarnecki, de, fadas, morbido, Thomas, tragedia
© Thomas Czarnecki, "Cinderella - Too fast".


Fonte: Obvious: um olhar mais demorado

Artigo interessante assinado por Branca Dias no blog "Obvious: um olhar mais demorado" sobre as fotos de Thomas Czarnecki e sua visão do final trágico dos contos de fadas...
Um trecho:
Conto. Não conto. Conto? Este conto não tem um final feliz. O seu fim é trágico, o ambiente é decadente, obscuro e mórbido. As personagens são figuras femininas da Disney que o leitor talvez reconheça como princesas. O tempo, esse, se mantém: "era uma vez..." E o fim? Como seria de esperar, é “Não viveram felizes para sempre”.

Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2012/06/e_nao_viveram_felizes_para_sempre.html#ixzz21Hr4lbho

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Você está ai?


Marc Chagall

Sua pergunta chegou depois  que ele tomou o último gole daquela vodka da noite anterior,  
- Você está aí? 
Simplesmente não respondeu. Sem querer  recorrer a nenhuma filosofia, não respondeu porque pensou seriamente se estaria. Mas já pensava então, e não respondeu por impulso, hábito, ansiedade ou mania. Não respondeu. Tamanho o silêncio, ouvia o gole do líquido rasgar sua garganta, quase um engasgo. Mas ele não estava lá. Não naquele momento, não saberia quando estaria novamente. Como pensava, preferia não tentar antecipar nada, como também não apelar para nenhuma filosofia, não inventar nenhum sentido. Só não queria mais estar, e assim não respondeu. Desapareceu aos poucos em si mesmo, ouvindo blues e latidos de feras que devoram a alma das horas desperdiçadas com o que não se pode mais.
Hoje foi o dia que ele não resolveu nada. 
Não escreveu um poema. 
Hoje não estaria em lugar nenhum.
E não conseguiu ficar feliz quando seu telefone finalmente tocou.


A sorte faz o ar rarefeito, por onde flutuam os amantes sobre uma cidade sem graça em sua mania de ser sempre a mesma.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Quando Ela Partiu



Aquela manhã parecia estranha por tudo, a noite tão pouco o fora menos. Além da chuva infernal, daquelas que marcariam os editoriais de todos os jornais, seu telefone não tocara. Passara a noite só. Pensava: “seria necessário, qual o sentido disso?” Mas ele não viera. Pela manhã o café, solitário. Uma mensagem de bom dia, um comentário sobre a chuva (o último). Uma vontade infinita de estar junto, dessas de quem pressente o fim, sente o resto da eternidade esvaindo-se nos próximos minutos, enquanto o café esfriava na xícara. Mas ele não veio. O dia veio como o último, nos próximos minutos, a própria vida iria assim mudar de lugar, sem avisar, a ninguém. Pra onde o som da sua voz não estaria mais em lugar nenhum. E o desespero não mais a atingiria.
E ela partiu em seu vestido azul. Faz um mês amanhã. 
Aquela chuva continuou pra sempre, como testemunha de um dia que a graça precisou ser reinventada no mundo.

"Pode ser a eternidade má
Eu ando em frente pra sentir saudade" (Marcelo Camelo)

Lucas Santtana - O deus que devasta mas também cura

"Ó Sol! Proteja o menino..."

 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Na Estrada

Paris, Texas  (Win Wenders)
Estava longe. Aquela estrada que tomara não o conduzirá a lugar nenhum que não ao ponto onde suas escolhas apontavam para a realidade na qual não escolhera nada, a vida o fizera. 
Dizia para si mesmo um tempo atrás enquanto tomava um café: 
- O futuro só pode ser o passado com toques de surpresa, não há outra matéria no mundo capaz de gerar nada. 

Seu vaticino, por demais pretensioso, não alterou em nada a ordem de vai-e-vem lento naquele Café barato do Centro daquela cidade pequena. Estava há tempos na estrada, suas desilusões se juntaram a um ponto no qual sua mente, como sua pele clara, estavam curtidas, sem elasticidade, quebradiças, se soltando ao vento.

Não acreditava muito no que dizia, enfim. Nem isso. Sobrava pouco depois de tanto tempo. Sua memória era falha demais, descobrira um tempo atrás. Os lapsos como grandes crateras, lhe causavam um assombro terrível pelo medo de perder ainda mais enquanto avançava. 

A estrada permitia o luxo de pensar bastante, o amor, a perda, a sorte, o destino, a loucura, o vazio. Muitos passarão a vida sem experimentar quase nada de todas essas situações e as sensações que lhes correspondem. Por azar, pensou, experimentara todas. Alquebrou-se na tragédia, desistiu-se no vazio. 

Passou então a andar pelo mundo, um perdido entre estradas de terra e cidades quase que esquecidas. 

Seu último poema de amor seria escrito de barro e milhas percorridas em noites de luar. 
Em seu último suspiro provavelmente, ele lembrou, e chamou sozinho pelo nome dela.


ps: não sabia fazer poemas, escrevia apenas...

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Assíncrono


Hoje é dia de festa, comemoração, rock, aniversário. Ou seria. Dia no qual sentir-se só é apenas mais um detalhe diante de maquinismos tão ruidosos da vida. Parte de um caminho onde o medo passa a existir, onde coragem se mede por pequenos gestos ao levantar, antes de escovar os dentes e dizer-se com toda convicção de quem mente: que é preciso acreditar em algo. Hoje me perguntaram se estou bem, não estou, gostaria, por todos que me querem bem, pra sentir o que devo sentir, para amar quem devo amar. Quero calor, abraço, riso, mar. Tenho medo de lembrar, mais ainda de esquecer. Medo de perder ainda mais. Quero cantar aquela música da nossa conversa, sorrir, receber afagos e não sair mais. Medo que seja tarde. O tempo é assíncrono e pode ser muito perverso. Há coisas que simplesmente não voltam. Mas vida pode ser verde de esperança.

baixinho ela lhe disse: tudo vai ficar bem, meu bem... E levou pra ela todas as dores que um coração poderia carregar.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Micro Conto: O Dito e o Não Dito


Cartier Bresson
O Dito e o Não Dito

Coisas não ditas que esperei ardorosamente não ouvir. Meias palavras em silêncio de uma conversa a um. Discursos subliminares proferidos pra dentro.
Saliva seca na garganta, havia muito ainda a ser dito, nos dois segundos seguintes.
Em que você não estava mais lá...

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Mas ele não a ouvia


Ela começou a noite sorridente, como sempre, mesmo com a vida em descompasso com tudo que deveria ser o certo. Era seu jeito de lidar com as coisas que não podiam seguir à sua vontade, sorria. Situações, tempos, idas e vinda de uma ciranda improvável, gestos não calculados de uma vontade que não podia ser expressa. Não agora, não ali, talvez, não com ele. Mas ela não sabia. Não sabia de cada coisa que podia advir de uma ou outra palavra solta, de um ou outro sonho que teve sem contar a ele, nem a ninguém. Ela não sabia de seus sentimentos, ou sabia demais, para não querer ouvi-los agora. Nem mesmo expressá-los. Tudo que queria era que ele a ouvisse, mas ele não a ouvia. Não dessa vez, pois estava surdo de seus olhos castanhos, de sua pele morena, e de uma promessa esquecida um tempo atrás. Sumir naquele momento seria o certo a ser feito, ir para algum lugar remoto onde a espera fosse companhada de calma, onde pudesse haver um merecido momento para os dois ao final. No qual deitar sua cabeça em seu colo e sentir as mãos dele passearem languidamente por seu cabelos fosse a única verdade a ser escrita na próximas linhas de um novo texto, ansioso para ser lido.


Ela ouviria cada linha com olhos fechados...

domingo, 8 de julho de 2012

Poesia 33 - Perto Demais


Estavas ali tão perto
De mim quase só um palmo
Só uma nuvem havia que nos desencontrasse
Só a sua boca havia
Para que não me houvesse a paz
E era assim que nada fazias
Só assim de meu nada mais havia
E do que me davas só no estar
Vinha com um frio arrepiador da tez
Do alto da montanha onde vives
Onde o muito frio gera neve
Vira de branco suas costas
Onde nada toca além do vento
Onde só seus movimentos
Pretendiam rivalizar com o voo
Brevidade eterna daquele momento
A desfazer o pouco que pretendia guardar de mim

sábado, 7 de julho de 2012

L. Wells - Franz Ferdinand

Fechando essa noite de sábado...


"If you have some sort of secret
If you need someone to tell
You can tell me because my memory always fails
I will forget and your secret will remain
Yes, the secret, your secret will remain"


Poesia 32 - Amores em Sal


Saudade - Almeida Júnior
Amores vertidos em sal,
Olho,
Mas todas as ruas estão vazias.
O olhar persegue fantasmas
E abandona as imagens das ruas.
Os prédios vazios têm janelas sem histórias,
Onde olhos claros sem alma
Derramam lágrimas sem verdades,
E sem mentiras de um outro tempo. 
Anjos do passado querem roubar as lágrimas do mundo,
Todas elas.
Querem também a retina,
E o cristalino olhar vazio.
Tornarem-se donos do futuro,
Enxugar as faces,
Não mais permitir os amores
Virarem sal.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

No Último Momento: um beijo



Noite. Sob o vento frio daquela praia, nenhuma distância havia entre os dois que confirmasse o que ela dizia sobre as tempestades de "e se" que inundaram a cidade a apenas poucas horas atrás. Das idas e vindas suaves, embora inquietas, de seu corpo enquanto tentava preencher a iminência do silêncio, no momento decisivo, restava o que resta quando o silêncio se faz por imposição de tudo que precisa acontecer: um beijo. Beijo dele, o beijo dela, o texto que deviam um ao outro, escrito de fugas, dúvidas, desejo, encontros e desencontros. Nenhum plano, nenhuma promessa, apenas o tempo parado enquanto perdiam o folego, a voz e as horas se viam derretidas em líquidos toques, suaves de uma ou outra coisa que recuperavam de tanto tempo distantes. Na profundidade dos seus olhos, aquela frase guardada para a ocasião, se perdeu. Era ela, nada mais, nem que fosse o último beijo, nem que fosse o fim do mundo, que explodia em fogos, gosto de mar e açaí. Conseguiram enganar o tempo que sempre jogou contra? Não sabiam, ninguém nunca sabe. Ficou um gosto bom, "que nunca acaba", por alguns instantes eram o que queriam, o depois não importava. Em silêncio seguiram, seus segredos encheriam ainda muitas linhas de um roteiro nos quais se achavam cada vez mais, a medida que pareciam sempre se perder.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Novidades, cansei.



Enfim, ando cansado de novidades. Das minhas, da vida, do mundo. Não ver a Lua pode ajudar, não há lembranças, não há o "e se?"... Ando cansado de despedidas, cansei de colecioná-las, as mudas, as diretas, as ternas, as que não houveram. Cansei de fazer diferença em algo ou para alguém, cansei de pensar se faço.  Farto de entrar pra história de algum modo. Hora de fazer o que sempre faço nessas horas, pegar a estrada. De ja vù! Por que os finais de semestre são sempre assim? Vou em busca de uma casa que sei não estar mais lá. Mas vou, na volta, tudo pode estar diferente. 
Meu jeito de viajar no tempo, onde nem sei se estarei lá.
Amo o amarelo.



O Lobisomem (Décio Pignatari)


"O amor é para mim um Iroquês
De cor amarela e feroz catadura
Que vem sempre a galope, montado
Numa égua chamada Tristeza.
Ai, Tristeza tem cascos de ferro
E as esporas de estranho metal
Cor de vinho, de sangue, e de morte,
Um metal parecido com ciúme..."


Poemas e Cartas a um Jovem Poeta - Primeira Carta (Rainer Maria Rilke)


Rainer Maria Rilke

O livro se foi, talvez pra sempre, não vale a pena conjecturar se as coisas podem voltar de alguma forma. Ficou a lição de Rilke, lembrei a pouco (em especial para quem ama cartas): 
"O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: 'Sou mesmo forçado a escrever?'"


Paris, 17 de fevereiro de 1903
Prezadíssimo Senhor,

Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizívies quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.

Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, — o único existente. Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha significar que o Senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.

Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o Senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de sua consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.

Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por este amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.

Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.

Com todo o devotamento e toda a simpatia,

terça-feira, 3 de julho de 2012

Com Carinho


Por esses dias tão absurdos, só a ternura pode reabilitar a humanidade ao tornar-se esperança.
De alguém muito querido:

"...Estava cansado de fugir, esconder-se era um golpe habitual, fatigava muito, hoje doía demais.
Os shows, as viagens, as praias, essas eram lindas, vinha-lhe um sorriso no rosto ao lembrar. Estavam apenas ofuscadas pelo momento..." 

Navidad



Dentro de algum sonho esquecido em um apartamento ao qual nunca mais voltaria, no fundo de uma grande gaveta na sala, havia uma caixa de pequenas e intricadas coisas de fazer rir. Um trancelim de barbantes de graça, uma caixa diáfana de cócegas fáceis, um silêncio antes da risada e uma infinidade de pequeninos versos por serem escritos. Como o vento, essas coisas se foram para se tornarem outras, e juntarem-se a sabores, fotos e lugares imprevistos, visitados com delicadeza em dias de sol, sem que ninguém soubesse. Praias desertas, outros sorrisos, colo e carinhos. 
Ao Sol, a vida pode voltar a correr como a areia daquela praia secreta. Uma forma de espera, um aconchego, pra poder contar uma nova grande novidade. 
O tempo nunca está a favor.