terça-feira, 30 de julho de 2013

Último Voo


Acordou subitamente no meio da madrugada. Estava bastante suada. Oitavo andar, mesmo com a janela aberta, não havia sinal de brisa que aliviasse o forte calor de verão. Tudo estava iluminado, o luar invadia o quarto. Estava sozinha, havia muito tempo que não dividia sua vida com alguém. Acostumara-se à solidão, se dava conta disso agora, pois não tinha a quem contar o sonho estranho que acabara de ter.

Mas esse não era o problema, nem mesmo seus estranhos sonhos recorrentes. Sua Vida, essa sim o era, iniciada dessa forma, com letra maiúscula e intensidade, pois naquele instante, por alguns segundos nos quais recobrava fôlego, ofegante, não sabia mais o que era real. Demorou até que seu pulso voltasse ao normal, tinha fortes dores na coluna. Tomou um comprimido e olhou o vazio da rua pela janela.

Lembrava-se do sonho agora, via seu amor indo embora, atravessando a rua, levando suas coisas. Arrependeu-se, tentou impedi-lo, pulou a janela e conseguiu voar. Seu feito atraiu a atenção de todos os passantes, que voltaram o olhar para cima. Uma mulher gritou. Ele parou no meio da faixa de pedestres e olhou para trás. Foi atropelado e morto por um ônibus circular.

Hoje, depois de tanto tempo, tem duvidas se as coisas aconteceram de fato dessa maneira.


Tiraria a prova, essa noite pularia a janela outra vez.

Martina Topley Bird - Sandpaper Kisses (live)

"You're gonna leave her
You have deceived her
Just a girl, a blood red pearl"

domingo, 21 de julho de 2013

A Caixa Floral


A caixa de presente, dessas de papelão, ornamentada com estampas banais (motivos florais, sem graça, em tons de rosa), permaneceu fechada sobre a mesa de jantar por mais de um mês. Havia muito tempo que não retornava às suas memórias de juventude, em especial às contidas nas imagens da dita caixa de ordinários motivos florais. Passava já anos desde que se despediu de seu grande amor, pra sempre. O tempo passou e a recusa em falar palavra que fosse reforçava sua convicção de que fizera a coisa certa.

Nessa manhã de sábado banhou-se, colocou roupa limpa, como se preparando para um grande encontro. À mesa, tomou seu café fitando a tal caixa. Receou abri-la. Antes, tentou lembrar-se dos momentos que as fotos traziam, se deu conta que já não conseguia. Seu silêncio havia feito morada em sua memória. Após o café, desistiu do plano, retornou a caixa para o fundo do maleiro do guarda-roupa. Sua necessidade em convencer-se em seguir em frente não podia mais conviver com as flores que brilhariam pra sempre ocultas ali dentro, junto com as praias, festas, amigos, lugares distantes, aranhas e traças que comiam devagar o que passou.

Mais a frente nessa história, enquanto convalescente em um hospital, pediu a alguém que lhe trouxesse a tal caixa. Era noite. Na manhã seguinte, na hora da visita, seu pedido foi realizado. Tarde demais, partira antes. Não teve chance de rever o tempo que acreditava na plena realização de suas esperanças de futuro.


A desbotada caixa floral de papelão seguiu fechada para a escuridão do seu último silêncio, dentro caixão. A ninguém mais, de fato, dizia respeito aquele passado.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Porque era dia de aniversário

Henri Cartier Bresson

Havia sol no dia que ela foi até a agência dos correios postar a dita carta. Havia prometido pra si mesma que não o faria, durante muito tempo hesitou, algumas vezes ensaiou o percurso a pé, que passava pelo mercado, atravessava aquela praça dos benjamins, pela esquina daquele botequim frequentado pelos motoristas e cobradores da empresa de ônibus. 

Hoje foi o dia em que aquele seu nó na garganta se desfez. Colocou um diáfano vestido floral, com alças finas, aquele mesmo vestido que repetia e descrevia, em câmera lenta, a cadência de seus passos como sua poesia em movimento, quando passava pelas ruas. Hoje resolveu soltar o cabelo, estava comprido. Solto, pois não havia mais motivos de esperas, nem amarras para que não balançassem ao vento da manhã dessa sexta feira. 

Postou a carta que dizia de sua liberdade. Deu as costas para a loja dos Correios com a leveza de quem nasceu hoje. Parou na padaria, pediu um café, fumou um cigarro, enquanto ia para o Centro. Flertou com o rapaz bonito da loja de sapatos. 

Sentia-se mais viva que nunca em seu aniversário.