domingo, 13 de abril de 2014

O Grande Engarrafamento

  Xiau-Fong Wee

O trânsito estava infernal naquele início de noite de sexta feira. A cidade enlouquecera com a avalanche de carros que tomara as ruas nos dois últimos anos. Ouvira de um comentarista da TV outro dia, tudo culpa do Governo que baixara os juros e os impostos. Nesse momento as razões não interessavam muito, já estava bastante atrasado para pegar Patrícia que saia do trabalho e o esperava. O engarrafamento, as ruas lotadas de carros guiados por pessoas desejando matarem-se umas às outras, o dia de trabalho especialmente ruim, e a iminência do reencontro desde a briga que tiveram no café da manhã.

Pensava, não conseguiam mais se entender. Eles estavam há semanas muito distantes, talvez meses, custava admitir, enquanto ouvia entediado qualquer música de uma dessa FMs metidas a sofisticadas, que repetem à exaustão que só tocam música de bom gosto. De uma forma secreta e corrompida quase amava o engarrafamento pelo retardo de minutos daquele encontro. Sabia que sua falta de paciência estava em um nível absurdo, o vazio amargo era uma das coisas mais difíceis de trazer engasgada por um dia inteiro. Sabia que com ela não teria sido diferente, mulher teimosa, birrenta. Mais do que isso, ela era inteligente e observadora astuta da temática “o que fora feito de nós”, sabia descrever perfeitamente o lugar de cada detalhe que fazia a decadência do que fora o amor deles.

Parou o carro, ela entrou. Beijo rápido na face, quase na boca. Dava pra sentir o cheiro de perfume e suor do dia, agridoce. Seguiu-se um pesado silêncio nos intermináveis e congestionados quarteirões seguintes. Ele não aguentou e cedeu, começou a falar quase sem controle sobre qualquer coisa a respeito do stress e a miséria que tomaram conta da cidade, sua desgraça irreversível, sua crença resoluta numa espécie de ética de que "vamos todos morrer", assim, num grande caos, em meio ao desespero de um grito cósmico. De súbito, e já sem nenhuma paciência ela o interrompeu. Perguntou-lhe se pensara em sua proposta de dar um tempo. Novo silêncio e ele explodiu numa sequência de frases que traduziam sua revolta contra tudo que acontecia entre eles naquele momento, ao mesmo tempo, que reforçava inadvertidamente, tudo que passavam.

Sem aviso, Patrícia saltou do carro enquanto esperavam um sinal de trânsito. Para surpresa dele, ela não dormiu em casa esta noite. Também não atendeu seus telefonemas. Apareceu apenas dois dias depois para pegar suas coisas. Sequer se despediram.

Lembrava então daquela sensação, de que a cidade iria se acabar em um grande grito cósmico, em meio ao grande engarrafamento.



terça-feira, 1 de abril de 2014

Evoluções de Carnaval


Ela acordou com espírito de samba. O carnaval irrompia através das venezianas do apartamento e a semana no fim. Ela resolvia cada um de seus afazeres com a pressa de quem achava que veria o fim do mundo, ao mesmo tempo, com a lassidão própria dos que já se achavam espraiados no tempo mágico do desperdício momimo. 
Agora, emergencialmente, era partir para o trabalho nessa sexta feira. Antes, porém, regar suas plantas, colocar comida pro peixe e torcer pro tempo passar rápido, se necessário pendurar-se nos ponteiros pra horas amolecerem e sair pra bailar. Antes das cinco já deixara o trabalho, correu pro Beco da Ladeira no bairro antigo. 
O bloco estava se organizando, primeiras cervejas e acordes da banda. O cordão fora gestado durante anos com a maior preguiça, estava saindo pela primeira vez. Ela Levaria o estandarte. Entre detalhes em rosa, maquiagem brilhante, batom vermelho e o sorriso maior do ano, ria-se de todo o povo feliz, especialmente do moço bonito que saltou em sua frente durante sua evolução. 
Não havia mais nada em si que contivesse o que a alegria poderia trazer. Reencontrou o mesmo rapaz em outra dança mais tarde. Terminaram a primeira noite de carnaval de corpos entrelaçados em meio à multidão. 
Não havia lua no céu. Não há lua no Carnaval. Nem precisava, em sua cabeça giravam os versos de Gabriela, “Chega mais perto moço bonito...” . 
Bastava-lhe.