quinta-feira, 28 de junho de 2012

Parada Súbita

Parou de súbito. Quando seu tempo passou não teve a chance de olhar dentro do espelho o que tinha vivido. O espelho havia sido quebrado, as fotos rasgadas e em breve estariam esquecidas. Findo o tempo, não sentiu mais cansaço, não havia mais nervo que respondesse à expectativa do ato. Na última esquina, da última rua, não havia nada. Sob a luz tremeluzente do poste ainda conseguiu acender um cigarro. Sua companheira se fora. “Péssimo isso tudo”, pensou. História que se repete, níveis de drama que se sobrepõem, virou tragédia, e da tragédia, o absurdo. Uma sequência havia sido quebrada ao confirmar que nada dura, a ordem do mundo beirava o caos das cólicas que assolavam seu estomago. Tragou aquele cigarro com a fúria de quem sabe viver seus últimos minutos. Há muito sabia que não viveria o bastante para ser grande coisa, mas tratou o saber como coisa de poeta e esforçou-se nas artes de viver com empenho, mas sem convicção - seu teatro divertia a muitos e o convencia que amanhã as coisas seriam melhores. Bobagem! Não foram, era sua vez. As dores que lhe corroíam as entranhas o derrubaram pela última vez. Ficara parado para sempre fitando o chão, como aquela imagem da moça bonita na página policial, congelado, como que ambalado num fino vestido azul de chuva.

sábado, 23 de junho de 2012

"Deixa o moço bater que eu cansei da nossa fuga"...

"Abre a janela agora
Deixa que o sol te veja
É só lembrar que o amor é tão maior
Que estamos sós no céu
Abre as cortinas pra mim
Que eu não me escondo de ninguém
O amor já desvendou nosso lugar
E agora está de bem"


sexta-feira, 15 de junho de 2012

Conversava através de músicas



Ela conversava através de músicas. 
Disse-me meio tímida certa vez, assim, como se contasse um segredo. Seu dia, em cada momento, era pontuado por uma melodia cantarolada baixinho, pra dentro. Esteve apaixonada um tempo atrás, mas só percebeu isso bem depois, nesse momento era final de verão e as últimas chuvas de março a acompanhavam enquanto achava um saco chegar molhada aos cantos e não poder ir à praia. Esteve apaixonada um tempo atrás, fora tão rápido, como outra música que conta estórias breves de pessoas que se perderam de si mesmas, e se acharam em finais sem finais. A música que cantarolava era mais ou menos assim, reticente, apesar da enorme vontade de viver; relutante, ainda que uma devoradora voraz das horas. Sua música combinava com estrada, fúria e tempestade – disso não esquecerei, seu jeito de cantá-la sempre era meigo. A melodia brilhava em seus olhos enquanto sua cabeça pousava sobre meu colo.
Perguntou: e o meu beijo?...
Pegou a estrada em seguida, a vida ao longe a chamou, nada podia detê-la. Sua paixão a aguardava além. 
Cantou isso bem alto!

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Morreu sozinha a mesa de um restaurante chique



Ninguém soube que andava sozinha por tanto tempo. Que trabalhava tanto, que de tanto não parar sua vida provavelmente não perceberia, que nesse dia, morreria sozinha em um restaurante chique da zona Sul. Em uma mesa discreta ao fundo do salão, cumpria seu ritual de todos os dias, pausa para o almoço, um café, um cigarro e o retorno ao trabalho pelo qual seu nome servia de referência para meio mundo de gente que não a conhecia. Nesse dia em especial acordara pensando em quanto tempo ainda trabalharia, para recuar, súbito, ao pensar o que faria quando sem nada pra fazer. Sua vida fora moldada a ferro pelos prazos e cobranças, era alguém rigidamente cumpridora de agendas. Sentiu-se demasiado cansada ao sair para a universidade, se sentiu velha ao espelho, não se reconhecera, sua imagem fugira de si, e ela definitivamente, não se via no reflexo. O cabelo permanecia impecavelmente acaju como há muitos anos, as primeiras rugas se somaram a umas tantas outras e estava nitidamente acima do peso. Não, nessa manhã não fazia ideia quem seria aquela impostora. No almoço,  como sempre, não tinha fome (como também a muito, já não tinha sono), revirava a comida lentamente com o garfo como quem se lembrava de algo inalcançável, talvez, naquele dia, tentando lembrar como seria sorrir, dividir uma alegria, ter algum afeto, menos que formalidades.Teve um ataque fulminante. E ninguém por perto, os filhos que não tivera, nenhum dos amores perdidos, nenhum parente pra lembrar, nem lá, nem em lugar nenhum. Ela trabalhava demais, era reconhecida demais e ninguém por perto nesse dia que seu coração também se foi, e já não cabia mais nenhuma metáfora em sua história.
No dia seguinte, alguém publicou uma nota sobre sua morte em um grande jornal da cidade, sua última referência.

Ninguém soube que escrevia um livro de memórias.