Ninguém soube que andava sozinha por tanto tempo. Que trabalhava
tanto, que de tanto não parar sua vida provavelmente não perceberia, que nesse
dia, morreria sozinha em um restaurante chique da zona Sul. Em uma mesa
discreta ao fundo do salão, cumpria seu ritual de todos os dias, pausa para o
almoço, um café, um cigarro e o retorno ao trabalho pelo qual seu nome servia
de referência para meio mundo de gente que não a conhecia. Nesse dia em
especial acordara pensando em quanto tempo ainda trabalharia, para recuar, súbito,
ao pensar o que faria quando sem nada pra fazer. Sua vida fora moldada a ferro
pelos prazos e cobranças, era alguém rigidamente cumpridora de agendas. Sentiu-se
demasiado cansada ao sair para a universidade, se sentiu velha ao espelho, não
se reconhecera, sua imagem fugira de si, e ela definitivamente, não se via no
reflexo. O cabelo permanecia impecavelmente acaju como há muitos anos, as
primeiras rugas se somaram a umas tantas outras e estava nitidamente acima do
peso. Não, nessa manhã não fazia ideia quem seria aquela impostora. No almoço, como sempre, não tinha fome (como também a
muito, já não tinha sono), revirava a comida lentamente com o garfo como quem
se lembrava de algo inalcançável, talvez, naquele dia, tentando lembrar como
seria sorrir, dividir uma alegria, ter algum afeto, menos que formalidades.Teve
um ataque fulminante. E ninguém por perto, os filhos que não tivera, nenhum dos
amores perdidos, nenhum parente pra lembrar, nem lá, nem em lugar nenhum. Ela
trabalhava demais, era reconhecida demais e ninguém por perto nesse dia que seu
coração também se foi, e já não cabia mais nenhuma metáfora em sua história.
No dia seguinte, alguém publicou uma nota sobre sua morte em
um grande jornal da cidade, sua última referência.
Ninguém soube que escrevia um livro de memórias.
Mutio bacana o texto! Parabéns.
ResponderExcluirMuito bacana o texto. Conto conciso e de impacto. Valeu!
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