domingo, 31 de maio de 2020

Marina

 Ilustração: Rossana Bastos-Krohmer

Marina ouvia os barulhos cada vez mais ruidosos que vinham das quadras próximas a sua casa, gritos, sirenes da polícia, explosões. Durante a pandemia, apesar das incertezas e ansiedade do momento, estava em segurança em sua casa em home office.

Envolvida em seu trabalho ajudava dezenas de projetos de educação voltados para jovens em situação de vulnerabilidade em comunidades ao redor do mundo.

Ela mesma imigrante em um país rico, cresceu numa dessas inúmeras comunidades. Sem chances, a única da família a estudar e, milagrosamente, se formar. Seus amigos de infância quase todos mortos de bala ou vício, no tráfico ou pela polícia. Suas amigas engravidaram cedo e nunca tiveram chance. Não muito diferente do que ocorria no país onde morava agora.

 Ilustração: Rossana Bastos-Krohmer

Marina, era uma sobrevivente. Nunca esquecera, pois, impossível. Negra, trazia na pele a cor da luta de quem teve que enfrentar um sistema feito pra moer gente, como ela.

Nas últimas semanas a angústia, dor e a revolta se tornaram insuportáveis pelas notícias das estatísticas inaceitáveis de negros pobres vítimas da doença. Dois dias atrás um negro pobre fora brutalmente morto pela polícia por motivo nenhum. A revolta tomou as ruas, como também a repressão violenta. Injustiça e opressão eram velhas conhecida sua e de sua gente, em todos os lugares.

O barulho do protesto chegara à porta do seu prédio.

Marina foi para as ruas lutar por justiça.

Cidade do México
Quarentena



quarta-feira, 27 de maio de 2020

Sobre Enganar o Destino e Escrever Finais felizes


Pulou do ônibus, última parada, sol a pino. Seguiu sozinha pela calçada quase correndo pelos quarteirões até a casa dele. Ato intempestivo. Nada mais interessava. Não se conformava com o destino. Cedo ouvira de um amigo que ela só escrevia sobre o fim. Não hoje, o final seria outro. Queria provar a si que a vida podia ter outro desfecho.
 Levou uma topada, arrancou a tira da sandália de dedo. Foi descalça o resto do caminho. Seu vestido floral, agora quase uma vela de barco, faltando pouco para fazê-la decolar com o vento. Seus cabelos se assanharam. Tocou o interfone quase a furar o botão. O “sim, quem é?” da voz mecanizada através do aparelho lhe fez abrir um sorriso.
Quando a porta se abriu, ele estava absolutamente surpreso com sua presença. Dava pra ouvir o som de Cat Power vindo do quarto: “Or the sound of your voice my dear/ That's got me dragged in here”.
E ela não conseguia parar de sorrir. Enganara o destino, mais tarde escreveria sobre algo que estava começando naquele dia.

Cidade do México
(umdiaqualquerdaquarentena)

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Antes que Venha Alguma Praga

Frans Zwartjes, Gelatine Zilverdruk, 1972 

Sentaram juntos no sofá. A TV ligada como mero cenário, ponto de fuga. As mãos mal se tocaram.

Era hora do silêncio final dizer mais do que qualquer das conversas que tiveram sobre o que não mais aguentavam carregar consigo. De Todas as vezes que as lágrimas foram embargadas, toda tristeza dissimulada para que a vida continuasse de algum modo.

Nessa noite as mãos se soltaram como se não tivessem nunca se encontrado. Como se a tristeza dominasse o mundo, o que também era verdade, e o amanhã, não mais viesse por causa de alguma praga que separaria para sempre as pessoas.

Coisas que acontecem no momento em que pessoas estão prestes a se perderem para sempre.

Cidade do México 
(seilámaisquediadequarentena)