sexta-feira, 4 de março de 2016

As Marcas Daquele Lugar (conto)

Richard Tuschman: Woman Reading 

Ela precisava alugar um lugar para aproveitar a breve licença que conseguira na Universidade para concluir seu artigo. Conseguira um apartamento mobiliado no estado vizinho. Não tão distante que não fosse possível voltar rápido de carro caso necessário, nem tão próximo que a colocasse ao alcance das inevitáveis interrupções, sobretudo, familiares. O tempo era curto. Tudo deveria ser intenso e rápido. O texto deveria sair dessa vez de qualquer jeito.

Poucas malas no carro, tomou a estrada muito cedo. Chegou quase pontualmente às dez horas, os poucos minutos de atraso se deveram a algumas voltas que teve dar a mais depois que perdera um acesso na entrada da cidade. Sempre acontecia, se perdia de uma forma ou de outra, odiava dirigir ali. Bairro de classe média alta, ruas limpas e bem pavimentadas, arborizado. Teria a paz que precisava para o trabalho.

A dona do apartamento a recebeu com euforia, achou ser um traço dela, um condicionamento pela frequência com a qual recebia inquilinos temporários. Talvez tivesse uns 65 anos, não mais do que isso. Apesar da voz acelerada, como quisesse sair dali o mais rápido, mostrou em detalhes o que era fundamental para a operacionalidade do lugar. Durante o briefing, pôde perceber pelos livros na estante do gabinete de trabalho que ela era de uma área de pesquisa pela qual também se interessara quando estava no doutorado um tempo atrás. Muito provavelmente, professora de alguma universidade. Tentou puxar conversa sobre isso, sugeriu conhece-la de algum lugar, pois parecia-lhe familiar, talvez até, que ela conhecesse seus orientadores de mestrado e doutorado. Em vão, o máximo que conseguiu foi assentimento da mesma sobre a coincidência de interesses, apesar das óbvias referências que o lugar sugeria.

Em torno de poucos minutos tudo estava concluído. Depois que se instalou começou a se dar conta que apartamento além de completamente mobiliado, ainda contava com toda decoração sobre as estantes, mesa de centro da sala, nos quartos, fotos dos filhos nos porta-retratos, jarros com plantas na varanda, roupa de cama, mesa e banho, apetrechos de cozinha. Tudo parecia lá como se os moradores estivesse todos no cômodo ao lado, ou, tivessem saído para visitar alguém e logo retornassem.

Ela não conseguiu não pensar como o tempo parecia ter parado ali, pensou isso com certa aflição, pois parecia-lhe estar em uma cápsula do tempo: o estilo construtivo e os materiais caros dos anos 80, os móveis projetados em cerejeira, piso de madeira corrida marrom, luminárias. Tudo parecia gasto, mas com discrição, o gasto pelo tempo, inevitável, ainda assim, com uma conservação admirável. O fato que lhe incomodava, apesar das evidências de presença, era um lugar vazio, quase um museu. Ninguém saiu apenas para que o imóvel fosse alugado. Todo lugar era organizado para preservar a memória dos anos, como se as pessoas das fotos nos porta-retratos continuassem a viver ali.

Com o silêncio do lugar e da vizinhança, em uma pausa para um café na primeira tarde passou em revista sobre os títulos nas estantes do escritório, material de trabalho em aula e de pesquisa, claro que ela era professora. A questão era, seria aposentada? A pergunta surgiu quando reparou nas caixas de arquivo que datavam de seis anos, com xerox de textos utilizados em algumas disciplinas. Todos os livros tinham edição desse último ano limite, bem como, as revistas científicas ou revistas periódicas jornalísticas sob a mesa de centro na sala. Algo acontecera que mudou tudo ali, não apenas, o fato de mudar-se para outro lugar e dispor deste para aluguel, mas o tempo havia sido deliberadamente aprisionado. Parecia que nada deveria sair dali, além do que, contra tudo que pudesse fazer a época, tivesse partido.

No dia seguinte, após o café da manhã percebeu mais evidências do grande ponto de mudança na vida dessa mulher. Além das fotos dos filhos, quando crianças e já adultos se graduando no ensino superior, e suas mesmo em viagem por lugares distantes, não havia, além de nenhuma referência ao presente destes, também, não havia sinal do pai e, ou, marido. Ele não estava em lugar nenhum. Nas paredes da sala e do corredor, haviam marcas que denunciavam a existência de quadros ou fotos naqueles lugares durante muito tempo e que foram retirados depois. Como cicatrizes do tempo, as paredes traziam esmaecidas, as marcas da pintura produzidas por anos em que foram cobertas pelos quadros que já não estavam mais lá.

Nos dias que se seguiram dedicou-se ao trabalho a que se propusera. Só encontrou novamente com a proprietária no final do período combinado para devolver-lhe as chaves. Novamente deu-se a conversa simpática com toques de euforia (quase) contida. Claro, não comentou nada com ela sobre suas questões e hipóteses sobre os sinais (evidências?) que o ambiente suscitava. Mais tarde já estrada, aliviada pela sensação de dever cumprido pela conclusão do trabalho, pensou que a mensagem contida no apartamento fosse ele mesmo, daquela forma, sem legendas, sem explicações. Fechado para qualquer tipo de arqueologia afetiva que resultasse em algum mínimo sucesso.

No final a verdade estava ali para ser compartilhada por pessoas como ela, estranhos, que sempre recusariam a perceber o óbvio, que o apartamento era o corpo do tempo marcado pelas partes que faltavam, um apelo para dividir o sentido do peso dos anos.


E de todas as coisas sobre as quais não vale mais a pena falar. Nem esquecer.

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