sábado, 20 de outubro de 2012

Estava Longe



Fazia muitos meses que ela o deixara. Ou se deixaram, já era difícil saber agora, talvez impossível, talvez desnecessário tentar saber. Pensou: “Drogas, ainda mais agora, por que essa chuva? Por que minhas roupas e pele até a alma?”. Mas se algo à toa, porque ainda ficava com os olhos rasos d’água quando lembrava? A sensação de perda e o vazio que dizem seguir esses momentos definitivos eram pouco para exprimir um único momento de sua respiração acelerada, no segundo quando se lembrou dela, em meio aquele temporal.

Encontrou refúgio em bar pediu uma cachaça e um cigarro. Há muitos anos não fumava, desde as brincadeiras de juventude, das noites de sarro, nas quais encontrar o amor era um jogo onde as promessas de aventura diziam muito mais do que os riscos de quedas absurdas e cortes abissais que a vida real costuma trazer pra quem se lança.

Tomou a cachaça como se tomasse o ar que lhe faltara aos pulmões. Tragou aquele cigarro como que para recuperar o chão que desparecera sob seus pés. A garganta queimando lhe lembrou de que estava vivo, embora custasse a acreditar que ela ainda o estivesse depois de tudo que havia feito para esquecê-la. Suas tentativas alucinadas de se autodestruir, redundavam num sentimento perverso de encontro com o mais intimo detalhe que ainda não havia conseguido remontar, a mais remota e quase inventada charada, que o derradeiro sorriso que ela lhe dera a tanto tempo poderia trazer consigo.

Não podia matá-la em sua memória. Prometeu-lhe fazê-lo para ter paz, ela seguia cada vez mais viva dentro dele, emergindo a cada chuva, crescendo pelas paredes úmidas de sua alma alquebrada como um fungo, tingido de um verde turvo como um musgo escuro sua alegria perdida.

Pediu mais uma dose. Apagou o cigarro na própria mão. A dor o acordou pra rua, pra ausência definitiva, pra hora de voltar pra casa.

Estava longe, amanhecia.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Um Poema: A Morte a Cavalo (Carlos Drummond de Andrade)

"Sleep" - Francisco de Goya
A Morte a Cavalo

"A cavalo de galope
a cavalo de galope
a cavalo de galope
lá vem a morte chegando.
A cavalo de galope
a cavalo de galope
a morte numa laçada
vai levando meus amigos


A cavalo de galope
depois de levar meus pais
a morte sem prazo ou norte
vai levando meus amores.
A morte sem avisar
a cavalo de galope
sem dar tempo de escondê-los
vai levando meus amores.
A morte desembestada
com quatro patas de ferro
a cavalo de galope
foi levando minha vida.
A morte de tão depressa
nem repara no que fez.
A cavalo de galope
a cavalo de galope
me deixou sobrante e oco."

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Jards Macalé - Soluços (1970)


O genial Tropicalismo à flor da pele de Jards Macalé.
Ouvir até lembrar que a pele já não está mais lá, arrancada pela raiz.
Vibrante onde agora só há nervos, veias, músculos e sangue.
Curtam!




Quando você me encontrar
Não fale comigo, não olhe pra mim
Eu posso chorar
Quando você me encontrar
Não fale comigo, não olhe pra mim
Eu posso chorar
E quando eu choro eu tenho soluços
E os soluços estragam minha garganta
E além disso eu uso lenços de papel
Eles se desfazem quando molham
Meus olhos ficam vermelhos e irritados
Eu ainda não comprei meus óculos escuros
Quando você me encontrar
Não fale comigo, não olhe pra mim
Eu posso chorar
Quando você me encontrar
Não fale comigo, não olhe pra mim
Eu posso chorar
E quando eu choro eu tenho soluços
E os soluços estragam minha garganta
E além disso eu uso lenços de papel
Eles se desfazem quando molham
Meus olhos ficam vermelhos e irritados
Eu ainda não comprei meus óculos escuros

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Uma Foto

Celeridade... JIMESTAMORTO.COM
Alécio de Andrade. 1975. Coleção Pirelli/MASP

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Através da Fresta


Das coisas que precisava dizer-lhe, a maioria não fora dita quando se despediram. Ficaram penduradas por um último fio, em algum suspiro, em algum olhar de canto, numa piscadela mais falante que o fechar suave da porta silenciou de súbito. 
O último carinho nos cabelos dela, enquanto estava distraída neste dia em frente a TV, era o máximo que podia trazer ainda na memória da ponta de seus dedos. Ali nesta mesma oportunidade, ela oscilou entre estar presente e em qualquer outro lugar no seu incrível universo sem fim, pelo menos umas trintas vezes. Almoço, vinho, café, conversa e o tempo que passava, cada minuto como instantâneo de um jogo no qual o final era previsível, pois já descrito num conto-poema que falava que eles não podiam estar juntos, mesmo enquanto seus olhares diziam o contrário. 

Nessa tarde conversaram sobre todos aqueles pequenos fatos da vida, as pequenas grandes coisas, dessas que fazem mais sentido quando compartilhamos, como que mostrando um antigo e desbotado álbum de fotos de família, aquelas pequenas histórias de vizinhança, de jogos no colégio, de arenga com irmãos, o flerte com a prima, a zanga com o pai. Essas coisinhas que quando não datadas e narradas, perdem-se como as coisas que ansiamos nos deixarem pra sempre. Durante o tempo em que estiveram vendo, ou pensavam que viam aquele DVD, o lapso em que se tocaram se estendeu pela dimensão toda do universo, a primeira vez, a primeira sugestão e todas as possibilidades que a pele intuía em algum automatismo de prazer. Negar, permitir, fingir, tudo estava presente na imobilidade congelante de algo que estava inexoravelmente acontecendo. Demasiado tarde para fugas. Registro efetuado, dali em diante tudo seria diferente, mesmo quando não mais fosse.

Hoje, depois de tanto tempo, quando ele lembrou de tudo isso, pensou em ligar-lhe, pensou no desconserto evidente de sua voz ao dizer-lhe que sentia saudades, e a expectativa do vácuo amistoso, e delicadamente distante que viria em sequência. Ah, a distância: a segurança daquele castelo de nuvens, o pequeno passo a ser dado para que toda a aventura recomeçasse quando novamente se desapercebessem. 

Ainda lhe ocorreu: Mais uma taça de vinho e ela se foi. 
A porta não fechou de todo, ficou uma fresta por onde ela, sem cerimonia, se mostraria. Ela sabia, nunca haveria segurança.
Quanto a ele, começou a entender.