“A sorte conta muito”, lera em uma crônica ao
final daquela Copa do Mundo.
Alguns dias depois, tarde da noite à meia luz do abajur, se perdera em um instante em que via o fracasso do favorito na Copa como um paralelo do que passava nos últimos tempos. Em outro momento não distante voltara
a fumar, coisa que sempre fizera sem jeito, como um eterno iniciante, as
escondidas de si mesmo. A garganta seca de nicotina, um copo de vodka, nada no estéreo.
Não via motivos pra mover-se até o toca discos e colocar as mesmas músicas que falavam
sobre ela. As que restaram depois que ela se foi.
Deitado sobre o assoalho do velho apartamento, a vida sob esta
perspectiva era em preto, branco e cinza que se insinuava nos contornos dos
móveis, do quadro no chão ainda esperando pra pendurar, dos jarros vazios nas quais
as samambaias e suculentas feneciam sem água. “Se não fosse aquela bola que
explodiu no travessão na prorrogação”, “se não tivesse entrado aquele maldito
zagueiro reserva que marcaria o gol que lhe arrancariam o título”. Lembrou o
quanto ela odiava metáforas futebolísticas. Gargalhou pra dentro. Deu um trago
no cigarro. Engasgou.
Outro gole de vodka. Bebera mais de meia garrafa
desde que começara a olhar as polaroides de quando estavam juntos. Gostava em
especial daquelas sacanas, as mesmas que, numa noite, ela pediu para ele que
tirasse. Estavam em um quarto de pousada numa praia distante, em uma das primeiras
vezes que viajaram juntos.
Nua, fazia poses sobre a cama, sem nenhum pudor,
algo entre moleca e a seriedade das mais frias modelos. Fitava-lhe
profundamente. Seus olhos intensamente negros, cabelos lisos, franja, compunham
sua nouvelle vague particular. Instante
infinito congelado no contraste noir dos
seus pelos escuros sobre a pele inacreditavelmente branca de sua pélvis. Suas
pernas abertas eram o lugar no qual ele tinha o mundo pra si. O sítio no qual
durante tanto tempo pensou que nunca chegaria. Chegara. E o tempo e as trapaças
da vida encarregaram de levar.
Hoje ouvira de alguém que ela estava viajando, não sabia ao
certo por onde. Seguira resoluta seu rumo, aquele mesmo, que um dia confessou para ele na cama antes de adormecer... E ele não quis entender. Parecia-lhe que ela hoje já não
estava com ninguém, o que parecia não fazer-lhe a menor diferença. Até escrevera para ele. No verso de um selfie de
polaroide disse: “Querido, vi muita coisa que gostaria imensamente ter podido
compartilhar contigo, hoje as coisas estão mais claras, vejo o mundo sob as cores
de uma tarde mágica, nada parece mais ter fim! Um dia talvez eu volte pra te
contar. Fique bem. Com carinho. A. K.”.
Mais um gole. Hora de fechar a caixa de fotos. Não
contara com a sorte, como o goleiro daquela seleção que levou o gol da eliminação das oitavas de final na prorrogação. Os
primeiros movimentos da rua se faziam ouvir. Logo mais tinha que ir trabalhar. Dormiu com a foto dela sob o travesseiro.