Xiau-Fong Wee |
O trânsito estava infernal naquele início de noite
de sexta feira. A cidade enlouquecera com a avalanche de carros que tomara as
ruas nos dois últimos anos. Ouvira de um comentarista da TV outro dia, tudo culpa do Governo que baixara os juros e os
impostos. Nesse momento as razões
não interessavam muito, já estava bastante atrasado para pegar Patrícia que
saia do trabalho e o esperava. O engarrafamento, as ruas lotadas de carros
guiados por pessoas desejando matarem-se umas às outras, o dia de trabalho
especialmente ruim, e a iminência do reencontro desde a briga que tiveram no café
da manhã.
Pensava, não conseguiam mais se entender. Eles estavam
há semanas muito distantes, talvez meses, custava admitir, enquanto ouvia entediado
qualquer música de uma dessa FMs metidas a sofisticadas, que repetem à exaustão
que só tocam música de bom gosto. De uma forma secreta e corrompida quase
amava o engarrafamento pelo retardo de minutos daquele encontro. Sabia que sua
falta de paciência estava em um nível absurdo, o vazio amargo era uma das
coisas mais difíceis de trazer engasgada por um dia inteiro. Sabia que com ela
não teria sido diferente, mulher teimosa, birrenta. Mais do que isso, ela era inteligente e observadora
astuta da temática “o que fora feito de nós”, sabia descrever perfeitamente o
lugar de cada detalhe que fazia a decadência do que fora o amor deles.
Parou o carro, ela entrou. Beijo rápido na face,
quase na boca. Dava pra sentir o cheiro de perfume e suor do dia, agridoce. Seguiu-se
um pesado silêncio nos intermináveis e congestionados quarteirões seguintes.
Ele não aguentou e cedeu, começou a falar quase sem controle sobre qualquer coisa a respeito do stress e a
miséria que tomaram conta da cidade, sua desgraça irreversível, sua crença
resoluta numa espécie de ética de que "vamos todos morrer", assim, num grande
caos, em meio ao desespero de um grito cósmico. De súbito, e já sem nenhuma
paciência ela o interrompeu. Perguntou-lhe se pensara em sua proposta de dar
um tempo. Novo silêncio e ele explodiu numa sequência de frases que traduziam
sua revolta contra tudo que acontecia entre eles naquele momento, ao mesmo
tempo, que reforçava inadvertidamente, tudo que passavam.
Sem aviso, Patrícia saltou do carro enquanto
esperavam um sinal de trânsito. Para surpresa dele, ela não dormiu em casa esta
noite. Também não atendeu seus telefonemas. Apareceu apenas dois dias depois
para pegar suas coisas. Sequer se despediram.
Lembrava então daquela sensação, de que a cidade iria se acabar em um grande grito cósmico, em
meio ao grande engarrafamento.