sábado, 15 de agosto de 2020

Ainda Que Pela Última Vez

         Fonte: AQUI


Depois de tanto tempo ela agora conseguia ver sua vida de forma muito mais clara. Hoje ela tinha uma perspectiva dos acasos, erros, acertos, medos presentes em todos aqueles momentos.

 

As mudanças forçadas, as reviravoltas em seus antigos e tão caros objetivos de vida. Nada mais daquilo fazia sentido em seu novo caminho. 

A vida era algo que se refizera mil vezes à sua frente e ela mal teve tempo de entender como tudo se passou, tão rápido, anos pareciam semanas agora.

 

Ela era outra, apesar de suas entranhas se revolverem silenciosamente como antes e pelos mesmos motivos do passado.

Só ela o sabia e guardava esse segredo para si. Não podia dividi-lo, ou porque não se importariam ou porque a vida varrera tudo para a sarjeta do esquecimento.

Pedia gentileza para consigo mesma enquanto se encontrava com suas memórias em desassossego.

 

Perdera sua família, seu trabalho a cansava e se afastara de sua cidade. A rigor, pouco do que vivera ali merecia ser lembrado e cada nó desse fio a trazia para o vazio onde estava agora.

Olhou o telefone por vários minutos, ligou para ele.

Perguntou-lhe qualquer coisa sobre sua vida apenas para ouvir três ou quatro palavras que sabia que ele diria.

A quinta, inesperada, foi "sim".

 

Rodoviária. Pegou um ônibus naquela mesma noite.

Na manhã seguinte, ainda cedo, trocaram um beijo com gosto de café.

Os mesmos cheiros de tanto tempo atrás.


A vida precisava de calma, mesmo que breve, improvável.


Ainda que pela última vez.

 

Cidade do México,

Quarentena,

14/08/2020

My Blueberry Nights - Ely Nevada

 

quinta-feira, 30 de julho de 2020

segunda-feira, 6 de julho de 2020

"Para Você, o Adeus Mais Doloroso"

Obituário de Ennio Morricone (por ele mesmo)


"Ennio Morricone está morto. Anuncio a todos os amigos que sempre estiveram próximos de mim e também aos que estão um pouco distantes e os saúdo com muito carinho.
Impossível nomear a todos. Mas uma lembrança especial vai para Peppuccio e Roberta, amigos fraternos muito presentes nos últimos anos de nossa vida. Há apenas uma razão que me leva a cumprimentar todos assim e a ter um funeral privado: não quero incomodá-los.
Saúdo calorosamente Inês, Laura, Sara, Enzo e Norbert por terem compartilhado grande parte da minha vida comigo e com minha família. Quero lembrar com carinho as minhas irmãs Adriana, Maria, Franca e seus entes queridos e que elas saibam o quanto eu as amava.
Uma saudação completa, intensa e profunda aos meus filhos Marco, Alessandra, Andrea, Giovanni, minha nora Monica e aos meus netos Francesca, Valentina, Francesco e Luca. Espero que eles entendam o quanto eu os amava.
Por último mas não menos importante (Maria). Renovo a você o extraordinário amor que nos uniu e que lamento abandonar. Para você, o adeus mais doloroso.”
Fonte: Aqui

Dollars Trilogy Ultimate Cut

Homenagem do Blog à monumental obra de Ennio Morricone.


"We can fight"

Obrigado.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Um Quase Sorriso

Daido Moriyama, Moments before, during, and after sex, 1970

Três da manhã. Entre um gole e outro de vodka, olhava perdida pros cantos da sala, buscava algum sentido nos objetos onde o tempo só havia deixado vazios. 

De um lado, prateleiras onde antes estavam porta retratos e outras lembrancinhas de viagens, a cristaleira sem mais nenhuma caneca colorida de café. O revisteiro onde agora o gato dormia.

Do outro lado da sala as cortinas imóveis em meio a um insuportável verão, o espelho que insistia em jogar-lhe na cara os olhos fundos e marejados.
A vitrola ficara, mas já não havia discos. Não haveria música além daquele silêncio, não mais.

Já virava a vodka no gargalo. Tornou a pensar o quanto insistira em tantos erros. Sabia, continuaria a cometê-los.

Lembrou quando o viu pela primeira vez. Um quase sorriso.

Dormiria logo depois sobre o telefone que não tocaria.

Foxygen - On The Blue Mountain

domingo, 31 de maio de 2020

Marina

 Ilustração: Rossana Bastos-Krohmer

Marina ouvia os barulhos cada vez mais ruidosos que vinham das quadras próximas a sua casa, gritos, sirenes da polícia, explosões. Durante a pandemia, apesar das incertezas e ansiedade do momento, estava em segurança em sua casa em home office.

Envolvida em seu trabalho ajudava dezenas de projetos de educação voltados para jovens em situação de vulnerabilidade em comunidades ao redor do mundo.

Ela mesma imigrante em um país rico, cresceu numa dessas inúmeras comunidades. Sem chances, a única da família a estudar e, milagrosamente, se formar. Seus amigos de infância quase todos mortos de bala ou vício, no tráfico ou pela polícia. Suas amigas engravidaram cedo e nunca tiveram chance. Não muito diferente do que ocorria no país onde morava agora.

 Ilustração: Rossana Bastos-Krohmer

Marina, era uma sobrevivente. Nunca esquecera, pois, impossível. Negra, trazia na pele a cor da luta de quem teve que enfrentar um sistema feito pra moer gente, como ela.

Nas últimas semanas a angústia, dor e a revolta se tornaram insuportáveis pelas notícias das estatísticas inaceitáveis de negros pobres vítimas da doença. Dois dias atrás um negro pobre fora brutalmente morto pela polícia por motivo nenhum. A revolta tomou as ruas, como também a repressão violenta. Injustiça e opressão eram velhas conhecida sua e de sua gente, em todos os lugares.

O barulho do protesto chegara à porta do seu prédio.

Marina foi para as ruas lutar por justiça.

Cidade do México
Quarentena



quarta-feira, 27 de maio de 2020

Sobre Enganar o Destino e Escrever Finais felizes


Pulou do ônibus, última parada, sol a pino. Seguiu sozinha pela calçada quase correndo pelos quarteirões até a casa dele. Ato intempestivo. Nada mais interessava. Não se conformava com o destino. Cedo ouvira de um amigo que ela só escrevia sobre o fim. Não hoje, o final seria outro. Queria provar a si que a vida podia ter outro desfecho.
 Levou uma topada, arrancou a tira da sandália de dedo. Foi descalça o resto do caminho. Seu vestido floral, agora quase uma vela de barco, faltando pouco para fazê-la decolar com o vento. Seus cabelos se assanharam. Tocou o interfone quase a furar o botão. O “sim, quem é?” da voz mecanizada através do aparelho lhe fez abrir um sorriso.
Quando a porta se abriu, ele estava absolutamente surpreso com sua presença. Dava pra ouvir o som de Cat Power vindo do quarto: “Or the sound of your voice my dear/ That's got me dragged in here”.
E ela não conseguia parar de sorrir. Enganara o destino, mais tarde escreveria sobre algo que estava começando naquele dia.

Cidade do México
(umdiaqualquerdaquarentena)

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Antes que Venha Alguma Praga

Frans Zwartjes, Gelatine Zilverdruk, 1972 

Sentaram juntos no sofá. A TV ligada como mero cenário, ponto de fuga. As mãos mal se tocaram.

Era hora do silêncio final dizer mais do que qualquer das conversas que tiveram sobre o que não mais aguentavam carregar consigo. De Todas as vezes que as lágrimas foram embargadas, toda tristeza dissimulada para que a vida continuasse de algum modo.

Nessa noite as mãos se soltaram como se não tivessem nunca se encontrado. Como se a tristeza dominasse o mundo, o que também era verdade, e o amanhã, não mais viesse por causa de alguma praga que separaria para sempre as pessoas.

Coisas que acontecem no momento em que pessoas estão prestes a se perderem para sempre.

Cidade do México 
(seilámaisquediadequarentena)

sexta-feira, 27 de março de 2020

quinta-feira, 26 de março de 2020

O Sol Não Nasceria


Se reencontraram porque era impossível que não se vissem de novo, apesar das promessas de esquecimento e afastamento definitivo. Saíram pra dar uma volta de carro perto mar, pois ela dissera cedo que queria ver a Lua.

As mãos dele suavam ao volante, já não havia nada mais imperativo do que o silêncio enquanto trafegavam rumo à praia naquele domingo a noite.

Sentaram em um ponto afastado da areia, o mais afastado das pessoas, sob a luz lânguida de um poste de rua que mal os alcançava. O silêncio era quebrado apenas pelas ondas. O luar criava uma atmosfera fantasmagórica de medo da perda, arrependimento, dúvida. Enfim, apenas a mágoa emoldurava o quadro imponderável do fim.

Ela, sempre ela, enfim quebrou o silêncio. Falou da primeira vez que o viu, ao que ele emendou o mesmo sobre ela. Não que já não tivessem dito isso um para o outro várias vezes. Mas aquele era o ponto irretocável de suas vidas onde nenhum rancor jamais os alcançaria.

Enlaçaram as mãos. Se beijaram. Tiraram as roupas e se lançaram ao mar. Não precisava haver um amanhã. Poderiam viver na Lua como ela queria. O Sol não mais nasceria, porque nada mais importava.


25.03.20
Cidade do México
10º dia de quarentena

terça-feira, 24 de março de 2020

Quando o Mundo Acaba

Fonte: Violadreamlover


Meu Bem,

Quando nosso mundo começou a acabar, mal percebemos que tudo tinha mudado. Do nada tudo derrete, escorre, desaparece. As barreiras estão agora onde não percebíamos, na cama vazia, na solidão do café, TV ligada sem ninguém. Lugares vazios, não lugares que se desprendem do tempo, ignoram o espaço e se fincam em um lugar comum, onde tudo desaparece. Sem voz, sem lágrimas, sem conversa com amigo, o fim de todo o mundo é só isso, a imprecisão em explicar a crise, o ponto de não retorno, o colapso. No final as memórias são como um museu cada vez menos visitado. Na última ala está a foto de quando você me ignorou na rua. Na penúltima, a imagem de quando, em pleno desespero, arrancamos nossas roupas e fizemos sexo como se o mundo acabasse ali. Sim sabíamos, era a ultima vez. 

Cidade do México. 
9º dia de Quarentena.