Tinha escrito algo sobre ela num caderninho de notas já
gasto, desses de arame, que se compra em armarinhos. Era apenas mais uma
observação: como a amava depois de todos esses anos juntos.
Feita despretensiosamente enquanto ela se
arrumava antes de vir deitar-se.
As frases no caderno
não traziam nada de especial, nada que pudesse virar poema, prosa, filme.
Apenas escrevia quatro ou cinco linhas sobre como era bom estar com ela, todos
os dias, ao longo de tantos anos. Na última frase, lembra ainda quando se viram pela
primeira vez, ela sentada, leve, linda e morena, alheia a tudo num banco do
pátio da faculdade.
Ela pediu-lhe para
ler o caderno, ele disse que não, apenas no dia seguinte, era surpresa. E fechou-o. Ela veio
até a cama, deitou-se, deu-lhe um beijo suave na boca e tratou de aninhar-se em
seu peito, como sempre gostara de fazer e abrigar-se do friozinho da chuva que começara a cair forte lá fora. Dormiu instantaneamente. Na manhã
seguinte comemorariam bodas de ouro. Não haveria festa, não tiveram
filhos, mas sairiam para almoçar fora, pasta, como ela mais gostava.
Amanheceu, a chuva parara, dia perfeito. Ele
levantou-se cedo e, aproveitando-se que ela ainda dormia, preparou e trouxe-lhe
o café na cama. Deu-lhe um beijo leve na testa. Não houve resposta. Ela
deixara-o em algum momento da noite, assim, serenamente, como gostava de levar
a vida.
Enquanto as
primeiras lágrimas corriam lentamente pelos seus olhos, pegou o caderninho sobre o criado mudo e
leu para ela as últimas linhas de suas anotações sobre o seu amor, como era
amá-la depois de todos esses anos...
Poético, Vanvan, poético! A morte no silêncio da noite, na serenidade do amor, na maturidade da relação. O beijo quente sobre a testa fria, detalhe de um amor que se retirou, mas não se perdeu. Quem sabe, só ficou para depois.
ResponderExcluirAh! O título é belíssimo!
Obrigado mais uma vez pela gentil visita, Dimas!
ResponderExcluirNa verdade, a inspiração foi a música do Velho Bode, Elomar: Incelença Pro Amor Retirante. Diz lá nos últimos versos:
"Ao sinhô peço clemença
Num canto de incelença
Do amor que ritirou".
Abraços!
Poético, sim. Uma anotação, aliás "observação", que é ao mesmo tempo surpresa, portanto futuro,e memória, portanto passado. Um "presente" in memorian. Massa.
ResponderExcluirGeó.