quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Chove Sobre a Normandia (um conto de guerra)



A resposta à sua carta já demorava uma eternidade para chegar. Naqueles dias de guerra, o medo estava preso às cortinas na hora do toque de recolher, parecia se insinuar no cheiro da sopa rala da janta solitária. Nesses dias de verão, incomuns, a chuva constante e o frio marcante deixavam mais cinza os corações que amargavam a expectativa que alguma coisa mudasse no mundo, aparentemente, em vão, como tudo mais. Viver a esperança da chegada da próxima carta era a única que a sustentava, mais do que a expectativa de vê-lo cruzar a soleira da sala novamente. 

Enquanto houvesse cartas haveria esperança, a qual nada mais podia dá-la naquele momento, nem a fé e orações, nem o trabalho ensandecido na fábrica de munições, nada. A guerra corroia-lhe a alegria, despojava-a de sua humanidade, a guerra era o próprio mal. Seu único suporte naqueles dias cinzentos eram algumas lembranças que, quando invocadas, provocavam um tipo de choro implosivo, assim, como se um profundo poço sem fundo a sugasse com uma gravidade infinita.

Uma dessas lembranças dava-se nos dias felizes anteriores a guerra, as notícias de que tropas hostis haviam cruzado a fronteira de um país longínquo parecia exatamente isso, uma narrativa de fatos absolutamente insignificantes, frente ao desfecho da ultima festa do verão, quando se conheceram. Ela havia ido aquela festa com o seu vestido mais bonito, preto com azul marinho, os sapatos estavam lustrados e o rosto com a maquiagem discreta, nada que não comportasse um batom vermelho vivo, típico das garotas mais descoladas do centro da cidade. Havia muita energia pairando sobre todos naquela noite, os rumores falavam sobre convocação dos rapazes para a guerra. As moças temiam por seus amores, outras, que não os encontrasse. Havia pressa no ar. O viu chegar sozinho, já o conhecia de outros momentos, mas apenas de vê-lo passar ao longe. Não era exatamente um estranho, mas pouco ou nada se falaram das outras vezes que se viram. Nessa noite de tantas expectativas e ansiedades não foi surpresa se virem perto e tentando tabular qualquer conversa sobre algum conhecido em comum.

Ele, jovem tímido em primeiro momento, porém de sorriso aberto, com disposição incomum para a conversa, diferente dos outros rapazes do interior que tivera a oportunidade de conhecer anteriormente. Em poucos momentos estavam dançando, mesmo sendo ele alegremente patético tentando acompanhá-la em qualquer passo que fosse. Riram-se, riram-se absurdamente, quase como se não houvesse um dia de amanhã. Em meio a uma risada longa no fim da noite, o rosto dela paralisou-se por quatro ou cinco segundos, seus olhos fitaram o dele, e ele nesse momento, parou de falar. Nunca suas bocas estiveram tão próximas. Ele avançou, beijo-a, ela ensaiou um falsete de fuga, meio centímetro pra esquerda, uma dificuldade última e fugidia pra justificar pra si própria a conquista. Nada mais existia.
Voltaram para casa com a sensação que algo na ordem daquele tempo havia decididamente sido alterada, eles não se cabiam naquele tempo que agora parecia ser interminável entre o agora o momento do próximo encontro, impreciso.

As noticias naquela manhã opaca pelo rádio diziam de uma grande invasão por mar. Sabia que seu marido deveria estar fazendo parte daquilo. O noticiário falava de uma chuva de obuses na resistência à invasão. Chovia sobre a Normandia...

Mais duas semanas sem notícias. Até que a tão esperada e temida carta chegou. A visão do selo oficial no envelope atravessou-lhe o coração como um punhal absurdamente gélido. O texto formal e frio, além das condolências, falou-lhe que ele desaparecera em combate na praia de Omaha, França, em 06 de junho de 1944...

O tempo deles acabara-se, como aquela chuva sobre uma praia triste distante tingida de rubro. Apenas o primeiro beijo deles permaneceu no infinito.

3 comentários:

  1. "um batom vermelho vivo, típico das garotas mais descoladas do centro da cidade."
    Chovia sobre a Normandia...

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  2. VanVan,

    Tenho a mania de associar músicas aos meus contos e fiquei lendo o teu, imaginando a chuva, a invasão da Normandia, a batalha sangrenta, as balas cruzando o ar deitando nos corpos, corpos deitando na areia, areia encharcada de água do mar e de sangue do quem na infância brincava de ser soldado a tarde inteira. Não sei se é do teu gosto, mas lembrei da música "Soldados" de Renato Russo, do Legião Urbana, que deixo um pedacinho aqui para você.

    Nossas meninas estão longe daqui
    E de repente eu vi você cair
    Não sei armar o que eu senti
    Não sei dizer que vi você ali.
    Quem vai saber o que você sentiu?
    Quem vai saber o que você pensou?
    Quem vai dizer agora o que eu não fiz?
    Como explicar pra você o que eu quis
    Somo soldados pedindo esmolas
    E a gente não queria lutar.

    Belo conto, apesar do fundo trágico de um guerra.

    Dimas Lins

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  3. esse foi um dos melhores textos que já li teu, vanzinho.
    Ainda não tinha dito, reli e senti novamente o impacto de cada letra.
    Não sei ao certo de onde veio a insparação pra esse conto específico, mas fico com o sentimento do amor roubado palpitando em meu peito. O amor binário sim, à flor da pele, como deve ser.

    saudações, mon cher ami!!

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