quarta-feira, 28 de maio de 2014

Pelo Canto do Olho

Babe (Hugues Erre, 1986)
Ele disse pra ela que não havia mais como sentir-se tão vazio por amá-la.
Do seu desejo de negar-se totalmente quando ela pausava seu olhar sobre ele,
mesmo por poucos segundos. Desse olhar assustador de canto de olho que sorrateiramente o perseguia e flagrava-o em pleno ato de voyeurismo do que não valia mais a pena.
Antes de usar toda coragem que nunca teve e sair,
Ainda conseguiu dizer do seu desejo doentio,
Sua fixação atormentada pela imagem dos cabelos dela sobre o rosto (que escondiam ainda mais seu olho).

Bateu a porta com força naquela sexta feira a noite.

Pouco depois, sem piedade, deixou-se abater por doses massivas de vodka num bar.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Carta de Intenções

 Hugues Erre

Você me disse sobre o seu medo. Sim baby, você teve coragem. Você é uma sólida parede, um tipo de trator cujas esteiras deitaram perfume por toda a casa. Também chocolate, vodka e sal pelo caminho desse quarto até varanda onde ensaiei meu salto. Escrevi linhas de raiva com as unhas pela parede, quisera você me consertasse, voltaria sempre pra fazer estrago maior, te ter em meus braços em silêncio, sabor de açaí, sentir seu cheiro que já era quase o meu.

Te proporia maiores delícias e dores, maior seria a proposta para qual você nunca recusaria abrir suas pernas. Seríamos comidos pelo futuro que corre ao lado na rua escura e você me teria como nunca imaginou e o trator se perderia no lamaçal inevitável de um aborto de expectativas.
Baby, eu falhei porque sou torto e quero demais. E erro demais ao realizar minhas fantasias. No fundo não sei querer, ninguém me ensinou isso. 

Mas hoje você falou do seu medo, hoje eu era seu medo. Você cruzou a porta para nunca mais. Sem mais, meu corpo começou a padecer da falta de todas as sacanagens que você me prometera quando nos conhecemos.

Um novo tipo de dor, uma síndrome de abstinência pelos cortes nos braços, pela promessa não cumprida do tiro de misericórdia disparado pelo seu sexo cru. Uma dor nova que faz continuar rastejando atrás de ti pelos mesmos cantos da casa, mesmo depois que você se foi. 

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Algo Sobre o Amor Antes do Amanhecer

Richard Tuschman, sobre as solidões de Edward Hopper.
Olhou para o lado e ela estava lá, encolhida, braço sob a cabeça. Como um bebê que crescera demais e enrolava-se em si mesma, misturava-se com o travesseiro, cabelos soltos, nua, lençol no chão. Ele virou-se pro lado oposto, incomodado por toda a luz do mundo que vinha da janela aberta lhe cegando os olhos cansados tão cedo da manhã.

Dormira pouco. Até a pouco repetiram o ritual de confrontarem suas indisposições mútuas, suas necessidades incompreensíveis e sensibilidades afetadas pelas dores que ultrapassavam as cada vez maiores fissuras de suas vidas naquele momento. Fragmentos de frases grudaram em sua mente, sabia ter dito pra ela que não poderia mais haver amor entre eles. Ao que ela retrucou não ser o problema, ele não poderia amar ninguém, nem mesmo a si, por não conseguir ter alguma generosidade consigo mesmo.

A partir desse momento dois monólogos sobre a solidão que se constituía há tempos entre ambos começou a desenrolar: dele, a falta de generosidade para consigo, dela, o sentimento que se esvaia numa distância que se materializava como um salto de um trapézio absurdo entre eles, sem rede de proteção. O teatro de falas exaltadas intercalados por silêncios corrosivos durou toda a madrugada. Sabiam que o fim estava logo ali. Desistiram enfim. Ela foi para o quarto, ele para o sofá. Passados alguns minutos ela o chamou para cama. Sem cerimônia, ele ascendeu. Não mais se falaram, adormeceram vencidos pelo excesso de adrenalina.

Agora, com toda atenção na própria respiração para não acordá-la, tentava juntar em sua cabeça as peças de suas vidas largadas nessa confusão de distâncias. Sem aviso, ela mudou de posição na cama, virou-se para o lado dele, passou o braço ao redor do seu pescoço e aninhou-se ali, bem perto de sua orelha.


Ele emudeceu a respiração e os pensamentos, Abraçou-a ternamente e voltou a dormir. 

O inevitável ficaria pra mais tarde.