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Richard Tuschman: Woman Reading |
Ela precisava alugar um
lugar para aproveitar a breve licença que conseguira na Universidade para
concluir seu artigo. Conseguira um apartamento mobiliado no estado vizinho. Não
tão distante que não fosse possível voltar rápido de carro caso necessário, nem
tão próximo que a colocasse ao alcance das inevitáveis interrupções, sobretudo,
familiares. O tempo era curto. Tudo deveria ser intenso e rápido. O texto
deveria sair dessa vez de qualquer jeito.
Poucas malas no carro,
tomou a estrada muito cedo. Chegou quase pontualmente às dez horas, os poucos minutos
de atraso se deveram a algumas voltas que teve dar a mais depois que perdera um
acesso na entrada da cidade. Sempre acontecia, se perdia de uma forma ou de
outra, odiava dirigir ali. Bairro de classe média alta, ruas limpas e bem
pavimentadas, arborizado. Teria a paz que precisava para o trabalho.
A dona do apartamento a
recebeu com euforia, achou ser um traço dela, um condicionamento pela
frequência com a qual recebia inquilinos temporários. Talvez tivesse uns 65
anos, não mais do que isso. Apesar da voz acelerada, como quisesse sair dali o
mais rápido, mostrou em detalhes o que era fundamental para a operacionalidade
do lugar. Durante o briefing, pôde perceber pelos livros na estante do gabinete
de trabalho que ela era de uma área de pesquisa pela qual também se interessara
quando estava no doutorado um tempo atrás. Muito provavelmente, professora de
alguma universidade. Tentou puxar conversa sobre isso, sugeriu conhece-la de
algum lugar, pois parecia-lhe familiar, talvez até, que ela conhecesse seus
orientadores de mestrado e doutorado. Em vão, o máximo que conseguiu foi
assentimento da mesma sobre a coincidência de interesses, apesar das óbvias
referências que o lugar sugeria.
Em torno de poucos
minutos tudo estava concluído. Depois que se instalou começou a se dar conta
que apartamento além de completamente mobiliado, ainda contava com toda
decoração sobre as estantes, mesa de centro da sala, nos quartos, fotos dos
filhos nos porta-retratos, jarros com plantas na varanda, roupa de cama, mesa e
banho, apetrechos de cozinha. Tudo parecia lá como se os moradores estivesse
todos no cômodo ao lado, ou, tivessem saído para visitar alguém e logo
retornassem.
Ela não conseguiu não
pensar como o tempo parecia ter parado ali, pensou isso com certa aflição, pois
parecia-lhe estar em uma cápsula do tempo: o estilo construtivo e os materiais
caros dos anos 80, os móveis projetados em cerejeira, piso de madeira corrida
marrom, luminárias. Tudo parecia gasto, mas com discrição, o gasto pelo tempo,
inevitável, ainda assim, com uma conservação admirável. O fato que lhe
incomodava, apesar das evidências de presença, era um lugar vazio, quase um
museu. Ninguém saiu apenas para que o imóvel fosse alugado. Todo lugar era
organizado para preservar a memória dos anos, como se as pessoas das fotos nos
porta-retratos continuassem a viver ali.
Com o silêncio do lugar e
da vizinhança, em uma pausa para um café na primeira tarde passou em revista
sobre os títulos nas estantes do escritório, material de trabalho em aula e de
pesquisa, claro que ela era professora. A questão era, seria aposentada? A
pergunta surgiu quando reparou nas caixas de arquivo que datavam de seis anos,
com xerox de textos utilizados em algumas disciplinas. Todos os livros tinham
edição desse último ano limite, bem como, as revistas científicas ou revistas
periódicas jornalísticas sob a mesa de centro na sala. Algo acontecera que
mudou tudo ali, não apenas, o fato de mudar-se para outro lugar e dispor deste
para aluguel, mas o tempo havia sido deliberadamente aprisionado. Parecia que nada
deveria sair dali, além do que, contra tudo que pudesse fazer a época, tivesse
partido.
No dia seguinte, após o
café da manhã percebeu mais evidências do grande ponto de mudança na vida dessa
mulher. Além das fotos dos filhos, quando crianças e já adultos se graduando no
ensino superior, e suas mesmo em viagem por lugares distantes, não havia, além
de nenhuma referência ao presente destes, também, não havia sinal do pai e, ou,
marido. Ele não estava em lugar nenhum. Nas paredes da sala e do corredor, haviam
marcas que denunciavam a existência de quadros ou fotos naqueles lugares
durante muito tempo e que foram retirados depois. Como cicatrizes do tempo, as
paredes traziam esmaecidas, as marcas da pintura produzidas por anos em que
foram cobertas pelos quadros que já não estavam mais lá.
Nos dias que se seguiram dedicou-se
ao trabalho a que se propusera. Só encontrou novamente com a proprietária no
final do período combinado para devolver-lhe as chaves. Novamente deu-se a
conversa simpática com toques de euforia (quase) contida. Claro, não comentou
nada com ela sobre suas questões e hipóteses sobre os sinais (evidências?) que
o ambiente suscitava. Mais tarde já estrada, aliviada pela sensação de dever
cumprido pela conclusão do trabalho, pensou que a mensagem contida no
apartamento fosse ele mesmo, daquela forma, sem legendas, sem explicações.
Fechado para qualquer tipo de arqueologia afetiva que resultasse em algum
mínimo sucesso.
No final a verdade estava
ali para ser compartilhada por pessoas como ela, estranhos, que sempre recusariam
a perceber o óbvio, que o apartamento era o corpo do tempo marcado pelas partes
que faltavam, um apelo para dividir o sentido do peso dos anos.
E de todas as coisas
sobre as quais não vale mais a pena falar. Nem esquecer.