Cartier Bresson |
Acordou-se de súbito, sentou-se na beira da cama e
olhou vazio para a janela. Passou as mãos pela testa, o suor escorria sobre
seus olhos, ardia o sal. O calor daquela madrugada desestimulava qualquer
menção a retomada do sono. Quase quatro da manhã, pensava: “era pra correr
alguma brisa”. Janelas plenamente escancaradas, o ar condicionado quebrado, o
ventilador parecia inútil adereço, cúmplice daquele suplício. Não conseguiu
encontrar o relógio. Estirou a mão para o criado mudo e tocou o maço vazio de
cigarros, só então se deu conta do fato de que ela o havia deixado há algumas
horas atrás, e por obra de alguma forma de cansaço extremo, um tipo de torpor, que
causara uma suspensão dos sentidos e das sinapses, conseguiu não lembrar-se por
alguns instantes de algo tão grave. Voltou-se imediatamente para trás. Fato, ela não estava mais lá, lado esquerdo da
cama vazio. Espaço vazio e lençóis desarrumados, o cheiro dela ainda
marcava-lhe as narinas, única presença residual naquelas fronhas. Pensou na
efemeridade daquele registro: horas? Dias? Quanto tempo durará ali sua presença
última, a latência de sua presença irrealizável, ida negada na impressão que
sua mão ainda carregava aquele perfume de lavanda, perfume de homem, como ela
gostava. Voltou o olhar para o lado da porta, tantas idas e vindas até aqui,
terá sido a última vez? Seus pensamentos iam e vinham realizando loopings
infinitos em formato de oito, do jeito que ela lhe explicara um dia, a forma
como funcionavam os “ritornellos” da vida. Tivera medo de dizer-lhe te amo,
medo que sua coragem súbita parecesse ridícula, frente ao ímpeto que tanta
juventude trazia sem fazer nenhum esforço, não disse. Calou-se naquele tempo
impreciso quando mais um passo teria feito toda diferença no embalo pra saltar
o precipício da novidade, do incerto, do inevitável. A falta dela naquele
quarto nesta madrugada era como o vazio da queda depois do salto, sentia-se
voando até dar-se conta que aquele ponto verde se aproximando rápido era o
próprio chão. Conseguiu arrancar um riso
envergonhado de si mesmo, lembrou-se do cachalote do Guia do Mochileiro das
Galáxias, era ele em queda livre. E sem levar toalha. Buscou o celular, nenhuma
chamada, nenhuma mensagem, mais vazios. Foi até a varanda. A rua também vazia lá
embaixo não impacientava apenas pelo texto que gritava para si sobre as coisas que
não estão mais lá, mas também do tempo que passaram dividindo aquela mesma vista, do que percebiam juntos: do céu, ao ninho de passarinho escondido nos
caibros da casa vizinha. Deitou-se na rede e sem titubear enviou-lhe uma
mensagem, assim, a mais rápida e mais cuidadosa, com todo o investimento de
sentimentos que podia sem avançar sobre fronteiras que não dominava: “saudade
de tu”. E deixou-se apagar no fundo da rede. Quando o sol lhe acordou pouco
tempo depois, ao levantar-se, pisou o celular que havia sido largado no chão.
Ao tomá-lo, verificou de forma displicente o visor, pois não haveria nada pra
ser visto ali. Porém, enganara-se, poucos minutos depois que caíra no sono
chegara a resposta dela e ele não vira: “saudades tb”... foi preparar um café,
era um novo dia. Sentia-se um John Wayne dos SMS’s.
Vanvan,
ResponderExcluirFantástico "o John Wayne dos SMS's". Essa angústia, a perda, a separação, renasce na esperança de uma mensagem de celular. É como o final de Blade Runner, uma paisagem sombria renovada por nova perspectiva do futuro. Nosso herói, se não for John Wayne, certamente será Harrison Ford.
Abraços,
Dimas
Caro Dimas,
ResponderExcluirdepois de ler seu comentário corri para o YouTube fuçar vídeos de Blade Runner. De fato, em profundidade a ideia toda do texto é de um renascimento heroico, contra todas as imposições de uma distopia aparentemente consolidada. Deckard é o herói universal, de cada um de nós, frente a um mundo que se "perde como lágrimas na chuva", a insistência última quando sequer se tem certeza da própria existência. John Wayne é um outro arquétipo, ele é também herói, certo, mas um tipo que salva e só, sobretudo por ser rápido no gatilho (e certeiro)... mas talvez ele tenha apenas sorte. Deckard não a tem, perdera alguns dentes e seus dedos talvez nunca mais serão os mesmos... mas quem não deixa alguns pedaços de si para trás pelo caminho?... Forte abraço! VanVan