A resposta à sua carta já demorava uma eternidade
para chegar. Naqueles dias de guerra, o medo estava preso às cortinas na hora
do toque de recolher, parecia se insinuar no cheiro da sopa rala da janta
solitária. Nesses dias de verão, incomuns, a chuva constante e o frio marcante deixavam mais cinza os corações que amargavam a expectativa que alguma
coisa mudasse no mundo, aparentemente, em vão, como tudo mais. Viver a
esperança da chegada da próxima carta era a única que a sustentava, mais do que
a expectativa de vê-lo cruzar a soleira da sala novamente.
Enquanto houvesse
cartas haveria esperança, a qual nada mais podia dá-la naquele momento, nem a
fé e orações, nem o trabalho ensandecido na fábrica de munições, nada. A guerra
corroia-lhe a alegria, despojava-a de sua humanidade, a guerra era o próprio
mal. Seu único suporte naqueles dias cinzentos eram algumas lembranças que,
quando invocadas, provocavam um tipo de choro implosivo, assim, como se um
profundo poço sem fundo a sugasse com uma gravidade infinita.
Uma dessas lembranças dava-se nos dias felizes
anteriores a guerra, as notícias de que tropas hostis haviam cruzado a
fronteira de um país longínquo parecia exatamente isso, uma narrativa de fatos
absolutamente insignificantes, frente ao desfecho da ultima festa do verão, quando
se conheceram. Ela havia ido aquela festa com o seu vestido mais bonito, preto
com azul marinho, os sapatos estavam lustrados e o rosto com a maquiagem
discreta, nada que não comportasse um batom vermelho vivo, típico das garotas
mais descoladas do centro da cidade. Havia muita energia pairando sobre todos
naquela noite, os rumores falavam sobre convocação dos rapazes para a guerra. As
moças temiam por seus amores, outras, que não os encontrasse. Havia pressa no
ar. O viu chegar sozinho, já o conhecia de outros momentos, mas apenas de vê-lo
passar ao longe. Não era exatamente um estranho, mas pouco ou nada se falaram
das outras vezes que se viram. Nessa noite de tantas expectativas e ansiedades
não foi surpresa se virem perto e tentando tabular qualquer conversa sobre
algum conhecido em comum.
Ele, jovem tímido em primeiro momento, porém de
sorriso aberto, com disposição incomum para a conversa, diferente dos outros
rapazes do interior que tivera a oportunidade de conhecer anteriormente. Em
poucos momentos estavam dançando, mesmo sendo ele alegremente patético tentando
acompanhá-la em qualquer passo que fosse. Riram-se, riram-se absurdamente,
quase como se não houvesse um dia de amanhã. Em meio a uma risada longa no fim
da noite, o rosto dela paralisou-se por quatro ou cinco segundos, seus olhos
fitaram o dele, e ele nesse momento, parou de falar. Nunca suas bocas estiveram
tão próximas. Ele avançou, beijo-a, ela ensaiou um falsete de fuga, meio centímetro
pra esquerda, uma dificuldade última e fugidia pra justificar pra si própria a
conquista. Nada mais existia.
Voltaram para casa com a sensação que algo na ordem
daquele tempo havia decididamente sido alterada, eles não se cabiam naquele
tempo que agora parecia ser interminável entre o agora o momento do próximo
encontro, impreciso.
As noticias naquela manhã opaca pelo rádio diziam de
uma grande invasão por mar. Sabia que seu marido deveria estar fazendo parte
daquilo. O noticiário falava de uma chuva de obuses na resistência à invasão.
Chovia sobre a Normandia...
Mais duas semanas sem notícias. Até que a tão esperada
e temida carta chegou. A visão do selo oficial no envelope atravessou-lhe o
coração como um punhal absurdamente gélido. O texto formal e frio, além das
condolências, falou-lhe que ele desaparecera em combate na praia de Omaha,
França, em 06 de junho de 1944...
O tempo deles acabara-se, como aquela chuva sobre
uma praia triste distante tingida de rubro. Apenas o primeiro beijo deles
permaneceu no infinito.