quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Na Dimensão Paralela (conto)

Lake (Sylvie Blum)

Já fazia algum tempo que saiam juntos. Ficavam. Faziam-se companhia, porém nenhum dos dois parecia sentir-se em um relacionamento. Eram desligados demais para isso. Não obstante, cada vez mais precisavam da presença um do outro, mesmo para dividir os silêncios nos quais tentavam adivinhar o que o outro estava pensando. 

Repartir também os momentos nos quais as falas saiam iguais. Como no dia que se disseram com vontade de ir à praia. Se deram conta que nunca tinham ido juntos. Justo à praia, que tanto gostavam. Mataram o trabalho e foram no meio da semana. Praia distante, quase sempre deserta. Ao chegar, como esperado, vazia. Andaram muito até chegar perto do mar, estenderam a esteira e silenciaram vendo as ondas. 

Ela tirou a entrada de banho e começou a passar o protetor. Sua pele ganhava uma nova vida ao sol, quase um detalhe, frente ao fato que mesmo depois de todo esses tempo, ele não conseguia desviar os olhos dos fartos peitos dela, mal escondidos pelo biquíni tomara-que-caia. 

O silêncio foi quebrado por ela ao cantarolar à Flor da Pele, do Chico:
“O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo”.
Olhou para ele. Sorriu. Com dois movimentos tirou o biquíni e correu para o mar.
Ele, apesar de lento, quase lerdo, claro foi atrás.

Assim desnudos, entraram no mar como em outra dimensão.
Para dentro do que não tem limite.

Nem nunca terá.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Pela Metade (conto)


Sentia-se meio vazia. Como um copo pela metade. Naquele momento lhe era impossível ver-se como um copo meio cheio e isso entristecia-lhe mais, sempre sentira dificuldade de ver a vida de outra forma. Disse isso para ele pelo telefone da última vez. Ele emudeceu por um segundo. Aqueles segundos pareceram uma eternidade até que ele dissesse algo. Quando tornou a falar disse a ela que ficasse bem. O melhor possível que uma condição de metade de copo permitia. Insistiu que ela tentasse. Na cumplicidade de poucas palavras que tinham, bastava. Ela sorriu. Esperaria. Sorririam juntos novamente.

domingo, 16 de novembro de 2014

Homenagem a Manoel de Barros (1916-2014)


Uso as palavras para compor meus silêncios. 
(Manoel de Barros)

sábado, 15 de novembro de 2014

The Lushlife Project - Small Town In Your Eyes

Belezas (conto)


Apenas o som da água jorrando da torneira da pia da cozinha. Suas mãos estavam imóveis segurando o prato do almoço em meio à espuma de detergente. Por alguns segundos se deteve fitando o vazio além dos imãs na porta da geladeira.

Passado já algum tempo desde que o viu pela última vez, divagava sobre as possibilidades que a vida oferecia e, quase imediatamente, negava. Era apaixonada pelo belo, a beleza a seduzia de todas as formas, sobretudo a beleza recôndita, tímida, discreta de si. Um tipo de beleza que sabia o ser para as pessoas certas. Algo não lhe parecia correto em relação às belezas que lhe chegavam na vida. Por que elas não ficavam? Pelo menos não ficavam sequer um pouco mais? Parecia injusto. A beleza que lhe apaixonava andava solta nas ruas, passava nos ônibus, virava a esquina, seduzia-a no cinema – em frames que nunca mais deixariam suas retinas.

Voltou lentamente ao som da água que caia na pia. E ele, por que não voltou para beijá-la? A beleza do mundo é arredia, pensou ela. Estava melancólica, mas não cabia uma lágrima.

Talvez só lhe pesassem as dificuldades das últimas semanas. Enfim, suspirou breve e lembrou: “belezas são coisas acesas por dentro”, como dizia Mautner.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Estranhezas (conto)

Paul Almásy (1960)

No encontro que se seguiu ela começou a perceber que ele era um tipo estranho, assim como ela, assim como todo mundo. Mas a estranheza dele encantava-a cada vez mais. Devia ter-se levantando da mesa quando ele falou-lhe, em meio a um gole e outro de caipiroska, que havia mudado para um prédio novo e que ele se incomodava cada vez mais com os sons de conversas de vizinhos recém-chegados vindas do hall. Saber de suas presenças ali tão perto, do outro lado da fina lâmina de madeira da porta, causava a ele uma apreensão diante dos inevitáveis encontros dali pra frente. Ele seria obrigado a falar e ser agradável. Não que quisesse ser desagradável com ninguém, mas não queria precisar ser nada em relação a ninguém que não conhecesse bem.

Ele era um tipo dos mais estranhos, mas ao invés de traçar uma rota de fuga, ela preferiu ficar, queria saber onde aquilo ia chegar. Na verdade ela não era assim tão aberta para o mundo quanto parecia, sua abertura e simpatia era o resultado de um bem elaborado roteiro que tentava seguir a risca, um desempenho em busca de continuo aperfeiçoamento. Poucos acreditariam se confessasse isso. Ele mesmo demorou a acreditar. Mas aceitou, afinal, se reconheceu nos sintomas.

Ele também era portador de uma falha em sua abertura social, Disse-lhe que ficava rubro com frequência quando descoberto em pleno ato de representar a si mesmo. Ela pensou, “ele era uma graça tentando fazer um tipo blasé ou descolado”, até conseguia. E ela ria ainda mais. Riram os dois.

Brindaram. Ela tomou sua vodka com gelo e limão. Ele pensou sobre isso depois e achou que era uma forma de promoção pessoal dela, mas deixou pra lá, achou-a algo destemida por isso. Concluiu que se era parte da cena criada para o momento, funcionou. Tocaram as mãos sobre a mesa, primeiro a ponta dos dedos, depois as entrelaçaram. O beijo que trocaram em seguida teve gosto de vodka, limão, chiclete de canela e do cigarro que ela fumava.

Foram pra casa dele e nenhum dos dois se importou pela manhã com os sons de conversa que vinham das escadas enquanto os vizinhos saiam para o trabalho ou para levar as crianças à escola. Nesse dia eles faltaram ao trabalho. Passaram a noite explorando suas estranhezas. Pelos menos seus corpos já não eram assim tão estranhos.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

“Open the pod bay doors, HAL.” (2001: A Space Odyssey)

A Nova Colega (conto)

Carlos León-Salazar

Chegara à empresa bem referenciada, seu currículo se fez antecipar pela chefia. Vê-la lhe deu a sensação que não haveria porque querer trabalhar em nenhum outro lugar do mundo. Ela era de outro setor, e, decepção, no início pouca convivência.

Mas a pausa do café tornou-se um momento mágico. Ela amava café.  Ficou mais fácil, disse depois que tinha uma dessas máquinas importadas de café expresso. Os cafés eram a chance de dizer um olá, derreter-se mirando furtivamente seus olhos. Perguntar, titubeante, qualquer coisa sobre música ou cinema. Sorte, não era do tipo que curtia coisas fáceis, nada de música de barzinho. Viu o último Wood Allen no cinema. Enquanto isso ele se contorcia para não se deixar perceber capturado pelas sardas que cobriam seus ombros, expostas pela generosidade do decote que caia displicentemente pelo braço.

Algum tempo depois, passaram a almoçar juntos, o primeiro cinema, a primeira ida à casa dela. Nunca esqueceu a noite na qual ela disse que ia embora. Usava uma t-shirt branca dele com o Yellow Submarine, nada mais. Caneca de café à mão. Os olhos dela ganharam um tom de verde-fim, ou verde-outono. Não importa muito, o daltonismo não o deixava perceber a nuance. Mas algo dizia que não haveria outra vez. Essas coisas são óbvias. Sempre são.

Faz uns seis meses que ela deixou a empresa e a vida dele.
Mudou-se para o exterior numa daquelas viradas impressionantes de pessoas dispostas a desafiar a si mesmas, não se importou com a relativa estabilidade financeira que tinha. Ele não teve mais notícias dela.

Até hoje, quando lhe chegou um postal dela de um país distante.

sábado, 1 de novembro de 2014

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Skrotes - Summertime

Segundo post com a banda aqui no blog.
Acompanha uma nostálgica viagem em imagens aos anos 1970.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Air - La Femme D'Argent

Comemoração (conto)

Foto: Antonio Lacerda / EFE
A praça estava lotada de bandeiras vermelhas. Todas as pessoas ansiosas pelo início da apuração. Ele chegou cedo, ainda com um pouco de sol da tarde. Andou um pouco pra lá e pra cá, não viu ninguém conhecido, pensou que talvez seus amigos tivessem ido para outro lugar acompanhar a contagem. Era mais um talvez naquele dia incerto. Ninguém lhe ligou. Nada de mensagens. 

Comprou uma cerveja e sentou-se no banquinho da praça, ao lado do quiosque. Chamou-lhe a atenção uma moça bonita que ia e vinha. Inquieta, grande sorriso, sabe lá de onde vinha e para onde ia. O tempo passou a apuração seguia, o voto a voto apertado extraia dos rostos uma expressão de quase desespero. Acompanhava pelo telão o desenrolar dos números.

Displicentemente olhou para o lado e viu a mesma garota de algumas horas atrás. Cabelo castanho escuro profundo, discreta franja. A longa tattoo de finos traços orientais no braço contrastava com a pele branca e os pelos escuros. Mesmo diante da preocupação do momento, o sorriso dela parecia maior, realçado pelo batom vermelho.

Vê-la retirou-o instantaneamente de sua quase letargia depois de tantas cervejas. Ela segurava uma grande bandeira vermelha. Também o olhou. Falou-lhe algo sobre os números do escrutínio, ele concordou. Trocaram mais algumas opiniões rápidas sobre qualquer coisa. Súbito, no telão surge o resultado final. A explosão de alegria da vitória mescla-se com gritos e uma vertiginosa antecipação do carnaval. Eles também pularam. Abraçaram-se e pularam mais. A bandeira dela foi ao chão e eles se beijaram. Demoradamente, exorcizando todas as angustias.

Com a cidade ainda adormecida, viram as primeiras luzes da manhã deitados de mãos dadas no gramado da praça. Ela pegou o primeiro ônibus. Ele seguiu a pé. Prometeram-se rever. Tudo tinha um clima de primeiro dia. O cheiro dela no seu braço. Era ano-novo outra vez.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Não Lugares (conto)


A porta da sala se fechara há pouco. Tomava uma última taça de vinho na varanda, encostada no parapeito.

Enquanto olhava para suas plantas, esperava uma resposta para os dilemas de seus descompassos afetivos. Queria que seu coração se tornasse prático, assim como ela era a maior parte do tempo com suas obrigações. Parecia não haver jeito. Essa noite era prova disso.

Eles se deviam essa fala, esse olho no olho, esse mergulho no desejo, insolúvel em um meio que não fosse o das relações imaginárias. Durante alguns momentos naquela noite falaram como ia vida. Entre um caso e outro ou uma confissão, foi-se uma garrafa de vinho e alguns cafés.

Nesse reencontro não tocaram no que os fazia querer estar ali e evitaram cuidadosamente suas antigas diferenças, como também, mais ainda o que parecia os unir. Cuidado apenas traído pelo riso bobo no qual se viram envolvidos, revivendo algumas piadas antigas e batidas.

Abraçaram-se longamente na despedida. Novamente aquele beijo perto da boca, a medida do não lugar, do que talvez nunca tenha estado, do que talvez nunca estará. Do que deveria ser.

Tudo o que parecia dizer aquela música antiga e com melodia triste, que estava no CD que ele lhe gravou como recordação.

Depois que ele saiu e a música terminou, fez-se um silêncio para o qual ela não estava preparada. 

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

The Cotton Jones Basket Ride - Chewing Gum

Pequenas grandes coisas perdidas no meio de tudo.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Sutilezas


Morreria pra sempre. 
A morte não seria má.

Fernanda Meireles

terça-feira, 7 de outubro de 2014

domingo, 5 de outubro de 2014

Embarque (Conto)


Aqueles estavam sendo tempos difíceis para ela. Entre as coisas que teimavam em não dar certo, suas contas vencidas e o dinheiro pouco do novo recente trabalho, tinha na cabeça apenas a certeza de que tudo aquilo seria passageiro. 
Roupa de dormir e uma xícara de chá. Colocou para tocar uma trilha de filme que seu pai ouvia quando ela ainda era criança. No clima nostálgico e embevecido pela música pensou em seu sonho da noite anterior, no qual tudo era diferente, e ela contava para um atento rapaz de olhos ternos que conhecera há pouco, o quanto tinha certeza que algo maravilhoso estava para acontecer. 
Na manhã seguinte ao chegar ao trabalho abriu um e-mail do mesmo rapaz, perguntava por ela e se poderiam se ver novamente. No final de semana combinaram um encontro. Foi um curto e intenso romance. No mês seguinte pediria demissão, entregaria o apartamento e cruzaria o país. Iria resolver seu sonho em uma terra estranha. 
Ao rapaz no aeroporto jurou nunca esquecê-lo. Agradeceu a ele por naquele sonho tê-la ouvido, beijaram-se pela última vez e ela se perdeu entre as outras pessoas por trás do portão de embarque. 
Hoje, depois de tanto tempo, ele tem quase certeza de que tudo aquilo não passou de um sonho. Dele.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Calendário (conto)

Via: Naked Women Drinking Coffee

Acordou. Acarinhou o gato. Ainda de camisola foi à varanda e regou suas plantas. Só então escovou os dentes e olhou-se no espelho. Entre seus compridos cabelos de um sempre fiel castanho-escuro, agora lhe escapavam alguns rebeldes fios brancos. Sem jeito. Tomou um café preto forte. 
Olhou o calendário, lembrou-se que era seu aniversário. Ficou sem graça por tê-lo esquecido. Definitivamente não gostava de aniversários, em especial, do seu. 
Não havia mais tempo. 
Sem mais, enrolou uma echarpe vermelha no pescoço e foi trabalhar.
Se desse compraria uma garrafa de vinho na volta.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

domingo, 21 de setembro de 2014

Liberdade (conto)

Fonte: Insana_Mente, via: Violadreamlover

Nessa manhã de sábado, logo depois de levantar, se via no espelho e pensava o quanto tinha acertado em suas últimas e arriscadas escolhas.  Ela havia deixado para trás sua antiga vida há muito tempo. 
Hoje olhava para si mesma de forma diferente: Seu corpo, suas ideias, algumas imagens da noite anterior que passavam rápido em sua cabeça, seu desejo e a pele ardente, a maneira como se sentia em agitada mudança. 
As coisas que deixou de fazer e que lhe pareciam tão essenciais, as opções que lhe tiraram o sono, agora se perdiam frente ao arrepiar de seus pelos enquanto pensava no que poderia acontecer. Na imagem refletida curtiu seu novo cabelo curto. 
Por sobre o ombro olhou sua cama bagunçada e reparou nas roupas espalhadas pelo chão (formando um tipo de linha desde a porta) e o cara que conhecera no bar perto do seu novo trabalho. 
Ele dormia ainda. No lado esquerdo um dos braços e um pé despencavam pela beirada afora. Sentiu seus peitos emperdenidos. Tornou a deitar-se. Abraçou-o forte pelas costas e embriagou-se de sua própria liberdade.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Pausa Para o Almoço (conto)

London: Lunch Time - A Time to Think (Source: HERE)

Era sexta feira. Depois de muito tempo, combinaram encontrar-se no intervalo do almoço. Trabalhavam no centro da cidade. Ela, secretária em um escritório de cobranças. Ele, assistente em um depósito de um grande magazine. 
Conheceram-se através de uma amiga em comum, uma prima dela, também em um almoço em restaurante barato pelo centro. Hoje se veriam em um mais arrumadinho, ambos conseguiram mais tempo e saíram ansiosos para o encontro. Ela falava sem parar. E ele controlava-se para não fixar seus olhos nos dela. Impossível não reparar que ela também o olhava, mesmo que muito rapidamente. 
A conversa sobre tudo na vida dos dois se passou em vinte minutos. Antes que tocassem na comida estavam se beijando. Tempos depois confessaram um para o outro terem temido que nunca parassem de falar, e que o beijo jamais ocorresse. 

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

De Cartas e de Suculentas (conto)

Foto: Katrina Stranger
Sábado, fim de tarde. Havia acabado de tomar banho, trajando apenas a toalha enrolada nos cabelos ainda molhados (coisas dela), arrumara parte da bagunça espalhada pela casa ao longo da semana. Depois café, um tablete de chocolate amargo e um cigarro. Sobre a mesa o bloco de rascunhos de arame com capa preta dura, caneta bic azul, além, à sua frente, um pequeno vaso de cerâmica com alguns pequenos cactos e brotos de suculentas. Ela chamava carinhosamente as suculentas de gulosas (ainda coisas dela). Olhava para o vasinho enquanto escrevia sua última carta para ele.  

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Algo Mais Sobre Perder-se (conto)


Noite, pouca luz pelo quarto. Quase irreal tê-la ali em suas mãos: todos os cheiros, curvas e pelos. E mais aquele jeito de dizer o nome dele em sussurro, que ela recentemente inventara.
O corpo dela em suas mãos, naquele instante inesperado, parecia trazer algo de religioso, de mágico pelo proibido. O algo que o salvaria, o redimiria por alguns instantes quando lembrasse isso no futuro. Por enquanto, a feitiçaria que existia nos movimentos daquelas ancas o fazia perder-se em danação. Sabia disso. Gostava cada vez mais.
Lia em cada reentrância um sinal, pra ele só o caminho que os peitos dela apontavam poderia levar-lhe para o lugar comum de onde nenhuma vida consegue voltar. Era um caminho sem volta. Ela lhe segurava forte uma das mãos. Com a outra cravava as unhas nas costas dele. E assim o conduzia para sabe-se lá onde. 

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

The Coasters - Down in Mexico (1957)

Death Proof (Tarantino, 2007)

Nunca é Dia do Caçador (conto)

Death Proof (Tarantino, 2007)
Na tarde que ele a procurou novamente, depois das primeiras (poucas) vezes que se viram, não fazia ideia o quanto estava se tornando perdidamente apaixonado por aqueles olhos escuros, fala rápida, gestos juvenis e balanço displicente daqueles cabelos longos. 
A pele dela agora lhe parecia ter a textura e cor que combinavam com a foto perfeita que pensou dela sem roupa. A nova estória que ela lhe contaria sobre algo banal e cheio de cores o faria pensar o quanto festejaria pra sempre viver naquele sorriso de lábios vermelhos e fartos. 
Bastaria agora que ela dissesse o seu primeiro oi e ele mergulharia no transe irremediável daquelas pernas, como na cena de Down in Mexico, do Tarantino. Mas ele ainda não sabia de nada disso.
O caçador, coitado, agora era a caça.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Annie Hall (Woody Allen, 1977) - Monólogo

Básico


Conto: A Garota da Imensidão Azul


Sábado à noite e ele resolveu sair. Já era tarde, depois de um dia longo e difícil precisava andar pelas ruas, sentir o frio no rosto, animar-se um pouco coma vista das pessoas envolvidas entre nuvens de fumo e cerveja em copos americanos. Sentar em alguns desses botecos de esquina e tomar algumas geladas ao som dos carros, buzinas impacientes de quem não se importa com a displicência boemia que anda a esmo pelo meio da rua às duas da manhã. Ter pra si um pouco dessa madrugada de berros e falta de medo de estar no mundo.

Entrou em um bar que não conhecia. Paredes vermelhas, mesas antigas, ficou no final do longo balcão, ao lado do dancing interessante, com um piso rebaixado, por trás de uma parede curva que lhe oferecia alguma reserva em relação aos olhares que vinham do saguão. Quase vazio, salvo por uma única garota que parecia ter se aventurado a seguir a música que ninguém mais conhecia ali.

A menina dançava sozinha, olhos fechados, jogando seus cabelos compridos para os lados. Longas tatuagens lhe subiam as costas nuas do vestido branco. Era iluminada por um azulado escuro brilhante, quase extraterrestre, com a luz negra do salão. Fartas sobrancelhas escuras. Peitos proeminentes, definitivos, daqueles que não se esquece nunca. E sua bunda e quadris faziam o movimento certo que ele precisava em sua poética desgarrada de inspiração.
A moça desenhava movimentos suaves repletos de impressionismo. Movia-se como em um ambiente sem gravidade, mergulhada na psicodelia da tristeza retrô que preenchia o ambiente. Flutuava hipnótica nesse seu universo interior, aquático. Repetia pra si mesma a letra minimalista que rolava nos alto-falantes, era possível ler nos seus lábios, inacreditavelmente rubros.

Um momento abriu os olhos e olhou exatamente para ele. Quatro ou cinco segundos entre um e outro movimento bastaram. Chamou-o para perto.

Ela era aquele algo que quebraria seu silêncio interior, que romperia bruscamente a voz em off que narrava sua maçante intolerância com quase tudo.
Desejava menos estar em mais um de seus frames do que apenas um passante descendo bêbado abraçado com ela uma rua de bares barulhentos pela madrugada, pronto para tropeçar em qualquer coisa que o destino lhes colocasse no caminho.

Viram o dia raiar juntos. Chamou-a pra si mesmo de "a garota da imensidão azul".

Não esqueceu mais seu perfume. 

Seu batom não largou mais da gola de sua camisa.

domingo, 3 de agosto de 2014

Moby - Sunday (The Day Before my Birthday)


Dia de aniversário. 

"Sunday was a bright day yesterday..."

Bom domingo!

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Vangelis - One More Kiss, Dear

"Until tomorrow, goodbye..."

Rachel (Sean Young) - Blade Runner (1982)

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Talvez Só Cansaço

Ela chegara tarde do trabalho nesta sexta feira. O pequeno apartamento alugado ainda tinha a sala tomada por caixas da mudança já não tão recente. Não que fosse rica, sequer tivesse sonhado com isso na vida, mas pela primeira vez morava perto da praia, da pontinha de sua janela dava para ver um pouquinho do mar a apenas algumas quadras. Em direção à cozinha, passou entre algumas caixas de livros e umas de não-sei-que-lá que talvez fossem de roupas, Leopoldo, o gato abandonado pelo ex namorado, quase a derruba em sua ânsia pela comida da noite. 

Banho frio. Ainda não instalara o chuveiro elétrico, por isso, maldizia-se da preguiça, falta de tempo e ou da falta de saco pra falar com estranhos, um eletricista que viesse resolver a tal coisa. Deixou os pesados óculos sobre a mesa, não precisaria mais deles hoje. Chá verde a mão, alguns biscoitos integrais, sentou no velho sofá laranja devidamente coberto com uma pesada manta e se pôs a pensar na vida. Leopoldo já saciado, agora insistia em passar entre sua cabeça e a parede por trás do sofá. 

Estava muito cansada hoje, pensara em chorar na volta pra casa, não sabia bem o porque. Talvez saudade de algum plano esquecido, de alguma coisa boa do tempo com o ex-namorado, talvez a demora em encontrar outra pessoa, ou, estivesse aprendendo a ser feliz com sua própria nova vida. Sempre desconfiara da felicidade. 

Ela se deu conta que hoje um velho amigo do trabalho parecia flertar com ela. Ele lhe sorrira algumas vezes mais ao falar sobre suas impressões do último filme que falava, óbvio, de amores que acabam e outros que começam do nada. O rapaz de barba rala e óculos, sempre tão gentil. Pensou: Essa bagunça uma hora passa. Convenceu-se que nesse momento só estava cansada. 

Permitiu-se e chorou baixinho. 

domingo, 13 de julho de 2014

A Sorte Conta Muito



“A sorte conta muito”, lera em uma crônica ao final daquela Copa do Mundo.
Alguns dias depois, tarde da noite à meia luz do abajur, se perdera em um instante em que via o fracasso do favorito na Copa como um paralelo do que passava nos últimos tempos. Em outro momento não distante voltara a fumar, coisa que sempre fizera sem jeito, como um eterno iniciante, as escondidas de si mesmo. A garganta seca de nicotina, um copo de vodka, nada no estéreo. Não via motivos pra mover-se até o toca discos e colocar as mesmas músicas que falavam sobre ela. As que restaram depois que ela se foi.

Deitado sobre o assoalho do velho apartamento, a vida sob esta perspectiva era em preto, branco e cinza que se insinuava nos contornos dos móveis, do quadro no chão ainda esperando pra pendurar, dos jarros vazios nas quais as samambaias e suculentas feneciam sem água. “Se não fosse aquela bola que explodiu no travessão na prorrogação”, “se não tivesse entrado aquele maldito zagueiro reserva que marcaria o gol que lhe arrancariam o título”. Lembrou o quanto ela odiava metáforas futebolísticas. Gargalhou pra dentro. Deu um trago no cigarro. Engasgou.

Outro gole de vodka. Bebera mais de meia garrafa desde que começara a olhar as polaroides de quando estavam juntos. Gostava em especial daquelas sacanas, as mesmas que, numa noite, ela pediu para ele que tirasse. Estavam em um quarto de pousada numa praia distante, em uma das primeiras vezes que viajaram juntos.

Nua, fazia poses sobre a cama, sem nenhum pudor, algo entre moleca e a seriedade das mais frias modelos. Fitava-lhe profundamente. Seus olhos intensamente negros, cabelos lisos, franja, compunham sua nouvelle vague particular. Instante infinito congelado no contraste noir dos seus pelos escuros sobre a pele inacreditavelmente branca de sua pélvis. Suas pernas abertas eram o lugar no qual ele tinha o mundo pra si. O sítio no qual durante tanto tempo pensou que nunca chegaria. Chegara. E o tempo e as trapaças da vida encarregaram de levar.

Hoje ouvira de alguém que ela estava viajando, não sabia ao certo por onde. Seguira resoluta seu rumo, aquele mesmo, que um dia confessou para ele na cama antes de adormecer... E ele não quis entender. Parecia-lhe que ela hoje já não estava com ninguém, o que parecia não fazer-lhe a menor diferença. Até escrevera para ele. No verso de um selfie de polaroide disse: “Querido, vi muita coisa que gostaria imensamente ter podido compartilhar contigo, hoje as coisas estão mais claras, vejo o mundo sob as cores de uma tarde mágica, nada parece mais ter fim! Um dia talvez eu volte pra te contar. Fique bem. Com carinho. A. K.”.


Mais um gole. Hora de fechar a caixa de fotos. Não contara com a sorte, como o goleiro daquela seleção que levou o gol da eliminação das oitavas de final na prorrogação. Os primeiros movimentos da rua se faziam ouvir. Logo mais tinha que ir trabalhar. Dormiu com a foto dela sob o travesseiro.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Pelo Canto do Olho

Babe (Hugues Erre, 1986)
Ele disse pra ela que não havia mais como sentir-se tão vazio por amá-la.
Do seu desejo de negar-se totalmente quando ela pausava seu olhar sobre ele,
mesmo por poucos segundos. Desse olhar assustador de canto de olho que sorrateiramente o perseguia e flagrava-o em pleno ato de voyeurismo do que não valia mais a pena.
Antes de usar toda coragem que nunca teve e sair,
Ainda conseguiu dizer do seu desejo doentio,
Sua fixação atormentada pela imagem dos cabelos dela sobre o rosto (que escondiam ainda mais seu olho).

Bateu a porta com força naquela sexta feira a noite.

Pouco depois, sem piedade, deixou-se abater por doses massivas de vodka num bar.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Carta de Intenções

 Hugues Erre

Você me disse sobre o seu medo. Sim baby, você teve coragem. Você é uma sólida parede, um tipo de trator cujas esteiras deitaram perfume por toda a casa. Também chocolate, vodka e sal pelo caminho desse quarto até varanda onde ensaiei meu salto. Escrevi linhas de raiva com as unhas pela parede, quisera você me consertasse, voltaria sempre pra fazer estrago maior, te ter em meus braços em silêncio, sabor de açaí, sentir seu cheiro que já era quase o meu.

Te proporia maiores delícias e dores, maior seria a proposta para qual você nunca recusaria abrir suas pernas. Seríamos comidos pelo futuro que corre ao lado na rua escura e você me teria como nunca imaginou e o trator se perderia no lamaçal inevitável de um aborto de expectativas.
Baby, eu falhei porque sou torto e quero demais. E erro demais ao realizar minhas fantasias. No fundo não sei querer, ninguém me ensinou isso. 

Mas hoje você falou do seu medo, hoje eu era seu medo. Você cruzou a porta para nunca mais. Sem mais, meu corpo começou a padecer da falta de todas as sacanagens que você me prometera quando nos conhecemos.

Um novo tipo de dor, uma síndrome de abstinência pelos cortes nos braços, pela promessa não cumprida do tiro de misericórdia disparado pelo seu sexo cru. Uma dor nova que faz continuar rastejando atrás de ti pelos mesmos cantos da casa, mesmo depois que você se foi. 

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Algo Sobre o Amor Antes do Amanhecer

Richard Tuschman, sobre as solidões de Edward Hopper.
Olhou para o lado e ela estava lá, encolhida, braço sob a cabeça. Como um bebê que crescera demais e enrolava-se em si mesma, misturava-se com o travesseiro, cabelos soltos, nua, lençol no chão. Ele virou-se pro lado oposto, incomodado por toda a luz do mundo que vinha da janela aberta lhe cegando os olhos cansados tão cedo da manhã.

Dormira pouco. Até a pouco repetiram o ritual de confrontarem suas indisposições mútuas, suas necessidades incompreensíveis e sensibilidades afetadas pelas dores que ultrapassavam as cada vez maiores fissuras de suas vidas naquele momento. Fragmentos de frases grudaram em sua mente, sabia ter dito pra ela que não poderia mais haver amor entre eles. Ao que ela retrucou não ser o problema, ele não poderia amar ninguém, nem mesmo a si, por não conseguir ter alguma generosidade consigo mesmo.

A partir desse momento dois monólogos sobre a solidão que se constituía há tempos entre ambos começou a desenrolar: dele, a falta de generosidade para consigo, dela, o sentimento que se esvaia numa distância que se materializava como um salto de um trapézio absurdo entre eles, sem rede de proteção. O teatro de falas exaltadas intercalados por silêncios corrosivos durou toda a madrugada. Sabiam que o fim estava logo ali. Desistiram enfim. Ela foi para o quarto, ele para o sofá. Passados alguns minutos ela o chamou para cama. Sem cerimônia, ele ascendeu. Não mais se falaram, adormeceram vencidos pelo excesso de adrenalina.

Agora, com toda atenção na própria respiração para não acordá-la, tentava juntar em sua cabeça as peças de suas vidas largadas nessa confusão de distâncias. Sem aviso, ela mudou de posição na cama, virou-se para o lado dele, passou o braço ao redor do seu pescoço e aninhou-se ali, bem perto de sua orelha.


Ele emudeceu a respiração e os pensamentos, Abraçou-a ternamente e voltou a dormir. 

O inevitável ficaria pra mais tarde.

domingo, 13 de abril de 2014

O Grande Engarrafamento

  Xiau-Fong Wee

O trânsito estava infernal naquele início de noite de sexta feira. A cidade enlouquecera com a avalanche de carros que tomara as ruas nos dois últimos anos. Ouvira de um comentarista da TV outro dia, tudo culpa do Governo que baixara os juros e os impostos. Nesse momento as razões não interessavam muito, já estava bastante atrasado para pegar Patrícia que saia do trabalho e o esperava. O engarrafamento, as ruas lotadas de carros guiados por pessoas desejando matarem-se umas às outras, o dia de trabalho especialmente ruim, e a iminência do reencontro desde a briga que tiveram no café da manhã.

Pensava, não conseguiam mais se entender. Eles estavam há semanas muito distantes, talvez meses, custava admitir, enquanto ouvia entediado qualquer música de uma dessa FMs metidas a sofisticadas, que repetem à exaustão que só tocam música de bom gosto. De uma forma secreta e corrompida quase amava o engarrafamento pelo retardo de minutos daquele encontro. Sabia que sua falta de paciência estava em um nível absurdo, o vazio amargo era uma das coisas mais difíceis de trazer engasgada por um dia inteiro. Sabia que com ela não teria sido diferente, mulher teimosa, birrenta. Mais do que isso, ela era inteligente e observadora astuta da temática “o que fora feito de nós”, sabia descrever perfeitamente o lugar de cada detalhe que fazia a decadência do que fora o amor deles.

Parou o carro, ela entrou. Beijo rápido na face, quase na boca. Dava pra sentir o cheiro de perfume e suor do dia, agridoce. Seguiu-se um pesado silêncio nos intermináveis e congestionados quarteirões seguintes. Ele não aguentou e cedeu, começou a falar quase sem controle sobre qualquer coisa a respeito do stress e a miséria que tomaram conta da cidade, sua desgraça irreversível, sua crença resoluta numa espécie de ética de que "vamos todos morrer", assim, num grande caos, em meio ao desespero de um grito cósmico. De súbito, e já sem nenhuma paciência ela o interrompeu. Perguntou-lhe se pensara em sua proposta de dar um tempo. Novo silêncio e ele explodiu numa sequência de frases que traduziam sua revolta contra tudo que acontecia entre eles naquele momento, ao mesmo tempo, que reforçava inadvertidamente, tudo que passavam.

Sem aviso, Patrícia saltou do carro enquanto esperavam um sinal de trânsito. Para surpresa dele, ela não dormiu em casa esta noite. Também não atendeu seus telefonemas. Apareceu apenas dois dias depois para pegar suas coisas. Sequer se despediram.

Lembrava então daquela sensação, de que a cidade iria se acabar em um grande grito cósmico, em meio ao grande engarrafamento.



terça-feira, 1 de abril de 2014

Evoluções de Carnaval


Ela acordou com espírito de samba. O carnaval irrompia através das venezianas do apartamento e a semana no fim. Ela resolvia cada um de seus afazeres com a pressa de quem achava que veria o fim do mundo, ao mesmo tempo, com a lassidão própria dos que já se achavam espraiados no tempo mágico do desperdício momimo. 
Agora, emergencialmente, era partir para o trabalho nessa sexta feira. Antes, porém, regar suas plantas, colocar comida pro peixe e torcer pro tempo passar rápido, se necessário pendurar-se nos ponteiros pra horas amolecerem e sair pra bailar. Antes das cinco já deixara o trabalho, correu pro Beco da Ladeira no bairro antigo. 
O bloco estava se organizando, primeiras cervejas e acordes da banda. O cordão fora gestado durante anos com a maior preguiça, estava saindo pela primeira vez. Ela Levaria o estandarte. Entre detalhes em rosa, maquiagem brilhante, batom vermelho e o sorriso maior do ano, ria-se de todo o povo feliz, especialmente do moço bonito que saltou em sua frente durante sua evolução. 
Não havia mais nada em si que contivesse o que a alegria poderia trazer. Reencontrou o mesmo rapaz em outra dança mais tarde. Terminaram a primeira noite de carnaval de corpos entrelaçados em meio à multidão. 
Não havia lua no céu. Não há lua no Carnaval. Nem precisava, em sua cabeça giravam os versos de Gabriela, “Chega mais perto moço bonito...” . 
Bastava-lhe.