terça-feira, 26 de novembro de 2013

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Via Expressa para o Futuro


A moça levou consigo poucas lembranças quando cruzou a soleira da porta. Deu seus primeiros passos pela rua já em outro mundo, numa terra distante, onde não fazia mais diferença se haviam tido tempo de dar adeus. Pouco mudava a ordem das coisas as horas que passaram conversando sobre como consertar o que não podiam falar. 

Olhava para os edifícios daquele país estranho e via uma terra desconjuntada, fora de ordem, na qual seus passos não faziam eco e as pessoas só se amavam em filmes antigos. Sentiu saudades, de verdade, pela primeira vez muitos anos depois, já estava enraizada, misturava-se à geografia de um lugar na qual ela estava colada às paredes como cartazes de propaganda. Sentiu falta de uma fala de sorrisos, que mesmo sem contar o que sentia, falava do gesto mínimo que seus olhos faziam ao acordar. 

Quis um café com cuscuz, daqueles que nunca encontraria em meio a tantas vias expressas para o futuro.

sábado, 2 de novembro de 2013

Toda poesia é falsa

Edward hopper - Sunlights in Cafeteria

Sábado, fim de tarde morno. Cidade estranha, escala numa viagem de trabalho.  Nada pra fazer, ninguém pra ligar, canso do barulho monótono do ventilador de teto. Melhor ir para o Centro ver as pessoas.
Paro em um café antigo, hora de brincar o velho jogo de adivinhar roteiros possíveis dos passantes. Imaginar destinos pros que ficam às mesas. Tentar acertar o motivo pelo qual o jovem casal discute efusivamente. Fantasiar o que me diria a garota de profundos olhos negros – olhar distante, chuvoso, desses que induzem poemas de despedidas a cada piscada – caso sentasse aqui comigo.
Ela lê um livro de poesias. Uma coletânea de capa dura, marrom e amarela, bastante surrada. Talvez vindo de algum dos sebos que vi no caminho, quem sabe, comprado nesse mesmo dia.
Ela se levanta, paga a conta e desaparece rua abaixo. Pude ver de relance o nome do autor: Dave Bowman.
Levanto-me também e procuro num sebo vizinho o tal livro. Encontro-o numa edição mais atual, abro-o no primeiro poema:

Deite seu peso em meu colo
Fique comigo
Experimente de perto meu desespero
Tente ver por dentro dessa escuridão
Seu cheiro tem algo de medo
Seu medo, algo de você
Ainda lembro
Agarro-me a isso
Com a força de uma relutância infinita
Não posso dizer-lhe mais nenhuma verdade
Talvez só reste uma
Só a dor é real
E toda poesia é falsa

Dessa forma inusitada aquela garota de inalcançáveis olhos de melancolia me fez saber : “Só a dor é real, e toda poesia é falsa”.
Volto para o hotel.
Noite, 27º. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Do lado em que quebram as ondas

Henri Cartier-Bresson
Um dia ela saiu. Juntou suas coisas pra ver outra vida, conhecer um oceano distante, ver de perto as ondas que quebravam em outra direção, numa praia que vira num cartão postal quando era pequena. Aquele momento não careceu despedida, nem havia muito que levar, comprou uma passagem de ocasião.  O mais importante era por os pés na areia daquele outro lado do mundo, no lado B de si mesma, quando suas saudades caberiam nos versos de um guardanapo, no sabor ácido daquele limão na bebida, no flerte do jovem que tomava uma cerveja no bar. Num final de tarde estava ali, do outro lado do mundo, no lugar onde os ventos faziam curvas que reviravam seus cabelos cacheados ainda mais, e ela pensava que aquele horizonte era do tamanho de todos os sonhos que podia ter vivido quando ainda não sabia que a dor obrigava a deixar coisas pra trás. A aceitar que o cenário mais belo do cartão postal é feito de alguma matéria de coisas que não existem mais. Nesse momento quis escrever algo, telefonar, quem sabe, tirar a foto perfeita. Não precisava dizer mais nada. Como não mais se veriam tudo seguiria seu rumo, de agora em diante só bastava ver as ondas que quebravam de um jeito diferente do outro lado do mundo.
Distância é uma precária combinação de pontes que insistem em se manter inexistentes, mesmo com todos os aviões cruzando os céus. 

Ps: O outro lado de si mesmo é a fronteira final. Há quem diga que poucos chegam lá. Ninguém nunca conseguiu voltar.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

ANTES QUE ELA CHEGASSE


Almoçara cedo nesta sexta feira, praticamente não tocou na comida. Ainda havia coisas para arrumar na casa antes que ela chegasse, mais ainda para colocar em ordem em sua cabeça antes que a visse novamente. Urgia dar uma aparência decente ao apartamento, dar um jeito na pilha de pratos na cozinha, papéis sobre o sofá, na roupa usada largada pelos cantos. 

Fez o que podia, pois sua vontade era pouca, forte apenas para uma luta imaginária contra o relógio, faltavam agora poucos instantes para a hora marcada. Do que era preciso mesmo para aquele encontro estava quase tudo pronto. 

O interfone tocou pontual, sabia que era ela, liberou imediatamente o portão. No momento em que chegou a sala estava ainda da mesma forma, não conseguira organizar nada, estava tudo do jeito de sua cabeça. Trocaram um “olá” rápido, pra dentro, intenso na dissolução da expectativa de que, de alguma forma, fosse diferente naquele último encontro. 

Sim, era talvez o último, ela estava se despedindo sem dizer nenhum “adeus”. Perguntou sobre suas coisas. Ele respondeu que estavam todas lá, encostadas na parede, nas últimas malas. Ele ajudou a descê-las do segundo andar. Do outro lado da rua um sedã escuro com os vidros levantados a esperava com o motor ligado. 

Ele faltou ao trabalho essa tarde. Com voz embargada, disse ao Chefe que estava doente.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Sem Nenhum Gosto

Well Dressed Man with Baguette (Larry Vogel)

Levantou-se no meio da madrugada. Havia esquecido as luzes da casa ligada, como muitas vezes nas últimas semanas, o clarão nos olhos o impediu de continuar fingindo dormir. Se investiu de toda determinação para sair da cama e ir à cozinha tomar um copo d’água.

Ao passar pela sala os viu todos os papéis, blocos, anotações e tudo que fingia não mais existir quando se abandonou depois que ela se foi. Pra variar a água do garrafão acabara, bebeu da torneira mesmo, tanto fazia. Fez um café, e tornou a olhar a mesa desarrumada. Enquanto olhava para a cadeira afastada, a roupa pelo chão, a planta que murchara, ouvia o silêncio histérico das palavras não ditas, a tormenta muda do gesto não realizado, tudo nas linhas que não conseguia mais retomar do seu último texto. Desde que ela se foi sua coragem vinha a contas gotas, letra a letra, à medida que a arrancava de si – a contragosto, sem nenhum gosto.

Puxou a cadeira para próximo da mesa, olhou para o futuro e escreveu algumas linhas que falavam de um encontro no passado, e de um querer que seguia sorrindo onde ninguém mais o alcançaria. Nessa hora o Sol começava a aparecer entre os prédios. Logo mais tinha que trabalhar. “Eles não mais se veriam”, pensou.  “Melhor ir comprar pão”

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Uma Pequena Fuga

Lissy Elle
Um dia ela saiu cedo, não disse a ninguém aonde iria. Pegou a estrada rumo à praia mais distante que pode chegar. O litoral do seu Estado não era extenso, assim como também não tinha muito dinheiro para chegar tão longe, apenas a passagem do ônibus. Foi até às colinas que davam para o oceano, desceu as pedras escarpadas e chegou até a fina faixa de areia da maré baixa.

Era meio de semana, não havia sinal de vida enquanto descia. Na sua mente, o motivo da pequena viagem tinha a ver com uma fuga, fuga súbita de si, de um mundo no qual já não se cabia. Partira como um foguete e pousara feito um modulo lunar naquele lugar desoladamente lindo, na qual sua solidão fazia sentido frente a qualquer história que escrevesse para si daquele momento em diante.


Não precisou mais pensar, deixou cair por terra seu fino vestido colorido. Singrava as ondas agora. Tomou banho de mar nua pela primeira vez. Amava-se mais do que nunca. 

Estava livre.

domingo, 1 de setembro de 2013

Little Dragon - Please, Turn

Domingo de Sol!

Anna Karina, "Vivre Sa Vie" (1962)


terça-feira, 27 de agosto de 2013

E Pegou a Estrada

"Compartment C, Car 293" (1938), Edward Hopper

Hoje ela queria sair dali, assim, de súbito. Ir, escafeder-se, melhor, teletransportar-se. Revirar a realidade por suas dobras sobre si mesma, ver por dentro das coisas invisíveis, experimentar um pouco do impossível, sentir a calma do olho da tormenta, dormir um sonho inesquecível. 

Ela queria apenas partir. Pra onde a levaria o coelho branco não interessava. Chegara a hora, ela o seguiria. Como não tinha rumo, escrevia em sua mente roteiros como melodias: suas melhores bandas, suas músicas secretas, um som que ainda estava por conhecer, aquele, que em segredo lhe fazia arrepiar a nuca, no mesmo instante em que voltava à realidade. 

Transgredir-se-ia sem pensar, a partir de hoje a vida não careceria de descanso, o Mundo seria seu pouso.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Série Cartas e Cinema (5): About Schmidt (2002) - Ndugu's Letter

"Confissões de Schmidt" (2002)
Momento comovente de um filme sobre o curso da vida e o envelhecimento inevitável ("se tiver sorte", dirá a maioria).
Direção de Alexander Payne.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Distrações de Aniversário


Era semana de aniversário que passava, e era urgente, a necessidade de comemorar. Foram-se tantos sobressaltos, uma pressa não sentida correu com os dias, devorou toda a vontade, se apossou do hoje. Chegara o dia de aniversário, ela não acordara. Não, ainda não tão cedo. Não sabia dos amigos nem de nada mais, embalada ficou, dormiu mais, pois era dia de aniversário, nesse dia não haveria pressa. Nesse dia se perderia do tempo e se acharia longe de qualquer euforia, não perderia energias pelejando por nada, muito pelo contrário, haveria um tipo de conforto, de satisfação diferente, não haveria nada pra esperar. Tomaria uma ou algumas cervejas geladas na varanda, molharia sua planta, conversaria com as formigas. Soltaria o relógio apenas quando o dia acabasse para que o fim só chegasse quando ela estivesse novamente distraída.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Último Voo


Acordou subitamente no meio da madrugada. Estava bastante suada. Oitavo andar, mesmo com a janela aberta, não havia sinal de brisa que aliviasse o forte calor de verão. Tudo estava iluminado, o luar invadia o quarto. Estava sozinha, havia muito tempo que não dividia sua vida com alguém. Acostumara-se à solidão, se dava conta disso agora, pois não tinha a quem contar o sonho estranho que acabara de ter.

Mas esse não era o problema, nem mesmo seus estranhos sonhos recorrentes. Sua Vida, essa sim o era, iniciada dessa forma, com letra maiúscula e intensidade, pois naquele instante, por alguns segundos nos quais recobrava fôlego, ofegante, não sabia mais o que era real. Demorou até que seu pulso voltasse ao normal, tinha fortes dores na coluna. Tomou um comprimido e olhou o vazio da rua pela janela.

Lembrava-se do sonho agora, via seu amor indo embora, atravessando a rua, levando suas coisas. Arrependeu-se, tentou impedi-lo, pulou a janela e conseguiu voar. Seu feito atraiu a atenção de todos os passantes, que voltaram o olhar para cima. Uma mulher gritou. Ele parou no meio da faixa de pedestres e olhou para trás. Foi atropelado e morto por um ônibus circular.

Hoje, depois de tanto tempo, tem duvidas se as coisas aconteceram de fato dessa maneira.


Tiraria a prova, essa noite pularia a janela outra vez.

Martina Topley Bird - Sandpaper Kisses (live)

"You're gonna leave her
You have deceived her
Just a girl, a blood red pearl"

domingo, 21 de julho de 2013

A Caixa Floral


A caixa de presente, dessas de papelão, ornamentada com estampas banais (motivos florais, sem graça, em tons de rosa), permaneceu fechada sobre a mesa de jantar por mais de um mês. Havia muito tempo que não retornava às suas memórias de juventude, em especial às contidas nas imagens da dita caixa de ordinários motivos florais. Passava já anos desde que se despediu de seu grande amor, pra sempre. O tempo passou e a recusa em falar palavra que fosse reforçava sua convicção de que fizera a coisa certa.

Nessa manhã de sábado banhou-se, colocou roupa limpa, como se preparando para um grande encontro. À mesa, tomou seu café fitando a tal caixa. Receou abri-la. Antes, tentou lembrar-se dos momentos que as fotos traziam, se deu conta que já não conseguia. Seu silêncio havia feito morada em sua memória. Após o café, desistiu do plano, retornou a caixa para o fundo do maleiro do guarda-roupa. Sua necessidade em convencer-se em seguir em frente não podia mais conviver com as flores que brilhariam pra sempre ocultas ali dentro, junto com as praias, festas, amigos, lugares distantes, aranhas e traças que comiam devagar o que passou.

Mais a frente nessa história, enquanto convalescente em um hospital, pediu a alguém que lhe trouxesse a tal caixa. Era noite. Na manhã seguinte, na hora da visita, seu pedido foi realizado. Tarde demais, partira antes. Não teve chance de rever o tempo que acreditava na plena realização de suas esperanças de futuro.


A desbotada caixa floral de papelão seguiu fechada para a escuridão do seu último silêncio, dentro caixão. A ninguém mais, de fato, dizia respeito aquele passado.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Porque era dia de aniversário

Henri Cartier Bresson

Havia sol no dia que ela foi até a agência dos correios postar a dita carta. Havia prometido pra si mesma que não o faria, durante muito tempo hesitou, algumas vezes ensaiou o percurso a pé, que passava pelo mercado, atravessava aquela praça dos benjamins, pela esquina daquele botequim frequentado pelos motoristas e cobradores da empresa de ônibus. 

Hoje foi o dia em que aquele seu nó na garganta se desfez. Colocou um diáfano vestido floral, com alças finas, aquele mesmo vestido que repetia e descrevia, em câmera lenta, a cadência de seus passos como sua poesia em movimento, quando passava pelas ruas. Hoje resolveu soltar o cabelo, estava comprido. Solto, pois não havia mais motivos de esperas, nem amarras para que não balançassem ao vento da manhã dessa sexta feira. 

Postou a carta que dizia de sua liberdade. Deu as costas para a loja dos Correios com a leveza de quem nasceu hoje. Parou na padaria, pediu um café, fumou um cigarro, enquanto ia para o Centro. Flertou com o rapaz bonito da loja de sapatos. 

Sentia-se mais viva que nunca em seu aniversário. 

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Dias de Rebelião


Pararam próximos a uma vitrine de uma loja chique do bairro nobre da cidade. Palmas das mãos estendidas sobre o vidro, os dedos dela e os dele, lado a lado, tocavam o vidro frio, sentiam na rigidez da transparência a distância das coisas que não lhes diziam respeito, o vazio do mundo nas coisas à venda - inalcançáveis.  Ver e não tocar, não atravessar, não transgredir, não rebelar-se contra a coisa que os aprisionavam num mundo segregado. Até o momento que, o voo não previsto de uma pedra, vinda sabe-se lá onde, estilhaçou tudo e cobriu a calçada com centenas de pequenos fragmentos de vidro. Mãos dadas, hora de correr pelas calçadas em convulsão. Dias de levante. Dedos entrelaçados, a revolução urrava pelos desejos libertos de todas as paixões no mundo, que as coisas não conseguiam mais reter.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Olhos de Viagem

Cartier Bresson (1969)
Sentaram-se próximos no mesmo café algumas vezes. Não parecia nunca passar muito tempo sem que a visse naquela mesa do canto - Curiosamente, sempre desocupada pra ela.
Reparou-a logo nas primeiras vezes, morena, cabelos compridos, gestos contidos, mãos finas, olhos que não estavam ali, nem em nenhum lugar, mas além. Além dos quadros de postais em molduras marrom na parede: Caminito, La Moneda, Abbey Road e outros lugares menos comentados mais ao Oriente.
Em silêncio seu olhar parecia assistir o ir e vir dos passantes em cada frame de uma realidade para a qual ela gostaria de se transportar naquele instante. Seu silêncio e solidão descreviam mais um postal: vestido branco curto, sandálias baixas, pouca ou nenhuma maquiagem.
Nunca parecia triste, nem tão pouco alegre, mas sim em trânsito, em um tipo de suspensão do tempo que a fazia de outro momento. Descrevia um movimento delicado no espaço ao verter o último gole da xícara.
Um dia no qual ela deixou o café, quem sabe para que destino, quisera desejar-lhe uma “boa viagem” - Sequer chegara a dar um “até logo”, no máximo a olhou mais demoradamente enquanto ela cruzava a porta. Até um dia que percebera que ela não mais retornara. A mesa do canto há muito era ocupada por pessoas sem viagem nos olhos.

Meses depois o proprietário fixou mais um quadro na parede. Podia jurar que na foto a moça morena está sentada num banco de praça em Barcelona. O olhar dela em trânsito, mesma paisagem em seu destino: a de seguir pra fora de tudo.

domingo, 19 de maio de 2013

Tragados Pelo Mar

The Perfect Storm (2000)

Estavam já há vários minutos em silêncio. Enquanto ele olhava todo aquele mar azul à sua frente, ela o perguntava sobre seu amor, seu passado, seu futuro. Ela queria ter filhos, ela queria ser sua, ela não queria a concorrência de nada, nem do tempo. Queria sua boca, seu sexo, deitar com ele sob aquele sol, construir uma cabana na praia. Ela perguntou-lhe se ele a amava. Silêncio, nada além das ondas e do vento. Ele continuava a fixar o mar, e pensava, bem no instante que uma grande onda quebrava nas pedras onde acharam o corpo do pescador desaparecido: “O que sobrou de um homem do mar encontrado nessas pedras. Seu barco, nunca mais foi visto, nem tão poucos seus colegas, o mar dificilmente devolve quem ele escolhe. Se alguém volta, porque a morte manda recado”. No lapso que se seguiu, ao olhar novamente para ela, além do espaço vazio, pode ver um ponto escuro já distante, descendo ligeiro a ribanceira. Evidente que ela não se importava com a sorte dos que são tragados pelo mar.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Sem Pedido de Resgate



Depois daquela visita dela a sua casa, duas ou três linhas urgentes, sobre o fato de ela querer sequestrar seu bibelô preferido, aquela miniatura do R2-D2. Ele pensou ter deixado claro, não se leva um R2-D2 da sua própria casa sem luta. Mas não conseguiu esconder que era a ele mesmo, que ela deveria levar naquela bolsa de praia. 

Enfim, desarmou suas trincheiras antes mesmo da luta começar. Não apenas  o pequeno robô, os dois foram tragados pela colorida bolsa de praia. Abduzidos, hoje dormitam na prateleira de uma casa estranha, durante todo o dia vendo aquela moça de cabelos castanhos passando de lá pra cá, sempre com um sorriso enorme no rosto. E uma cara de “eu não disse que vocês seriam meus, foi muito fácil”.

Não há notícias de pedido de resgate.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Bater a porta e sair

Edward Hopper - Nighthawks (1942)

Dentro de sua mente, ainda podia ouvir o som da porta ao bater daquela última vez. Daquele canto da sala de onde lhe parecera nunca mais sair, nada lhe era mais presente. Havia uma mudança lenta dos tons da parede à medida que o Sol era filtrado pelas cortinas claras, e as horas iam passando ao longo do dia. Cada detalhe daquele arranjo de flores sobre a mesa de centro fora cuidadosamente analisado sob aquele inusitado ângulo de observação no qual se encontrava agora.

Em certo instante, dentro de um looping eterno, entre o sorridente início de tudo e os fatos descontrolados que os levaram até o momento da contagem das hastes de margaridas sobre a mesinha de centro, houve a consciência que já se passavam pelo menos 12 horas que não pronunciava palavra. Nem consigo, muito menos com ninguém. Pensara isso ao olhar a xícara de café, ainda pela metade, sobre a mesma mesa de centro e que esfriara tanto tempo atrás – Percebeu seus lábios secos, colados, sedentos de saliva que os tirasse da prisão do silêncio. Parecia que daquela vez em diante nunca mais haveria diálogo, aparentemente, mesmo os monólogos haviam sido encerrados.

Noite. Súbito, levantou-se. Cuidou minimamente da aparência de cansaço. Lançou-se à rua. Minutos depois trocava ideias sobre a vida com o simpático senhor que atendia no antigo Café da esquina, do amargor da frustração à insistência que algo maravilhoso pode estar sempre pra acontecer. Passavam os anos e seu José continuava infalível em acompanhar histórias dos outros. Alguns cafés e pães de queijo depois – mal se dera conta o quanto estava com fome - aquela seria sua vez de bater a porta e sair pra vida.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Dársena Sur - Juan Carlos Cárceres

"...Otra mañana en Buenos Aires
me tomo un cafecito
y vamos viejo
a laburar.

Tal vez mañana, en Buenos Aires,
yo, cierro la valija.
Me subo a un barco
y nunca más."


domingo, 14 de abril de 2013

E alguns fios castanhos pelo chão

Hugues Erre (fonte aqui: Obvious)

Ele pra variar, não sabia para onde ir. Ela ali a sua frente naquela tarde de céu azul profundo. Entre um toque de leve de mãos, um sorriso e um instantâneo de destino em forma de sonhos, emergiam as escolhas irresistíveis: ficar ou seguir. Das bocas nenhum argumento lhes convencia, não havia nenhum fato que se opusesse às cores do silêncio enquanto se olhavam.

Se havia algum fato inescapável era o de que ela estava lá. Agora, à sua frente, atrás, aos lados, em cima e abaixo de onde o pensamento podia – Ela já estava. Cheia de praia e sol nos olhos e de brilho de toda à tarde. E ele lá esperando pelo beijo dela.

Ela, onde não se sabia, distante das velhas certezas, desmontando devagar os segredos de cada ruga no rosto dele, decifrando os códigos secretos que se pretendiam tão bem guardados nos seus rastros de cabelos brancos.

Deram-se conta que não sabiam para onde ir. Riram e continuaram.

No dia seguinte, restaram alguns fios de longos cabelos castanhos pelo chão.


terça-feira, 9 de abril de 2013

Antes que o amor acabe


Havia muita música no ar naquele dia. Nada poderia ser mais festivo do que um sábado no qual o samba tomava conta da cidade e a alegria dava o ar da graça, prometendo que tudo podia ser mais feliz. O enredo, claro, não seria outro, garoto que encontra garota, conversas sobre música e o povo que passava. Risadas na cara da vida. 

Como num drible sagaz e curto de Romário na pequena área, aquele canto de calçada havia se teletransportado para um universo paralelo. E num passe de mágica, gol! Dos alto falantes da rua, ouvia-se Chico Buarque: “Hoje, pena seria esperar em vão/ eu já tenho uma morena/ eu já tenho um violão/ se o violão insistir, na certa/ a morena ainda vem dançar/ a roda fica aberta/ e a banda vai passar”. 

Noite alta, o samba só crescia, dava para pensar em quantas melodias se podia desdobrar um único encontro. Quando suas mãos se tocaram, enquanto ela olhava através dos olhos dele, mais uma vez, parecia que Chico estava passando com a banda: “Eu quero cantar o amor/ antes que o amor acabe”.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

O Telefone Não Tocava



Hoje ela acordou cansada, pra variar. É sexta feira. Súbito, pulou da cama, não fazia mais diferença o transcorrer da semana e a mudança dos dias – uma, duas, três, 50 coisas pra fazer além do que sua razão podia aceitar. Não havia nenhuma festa em estar numa sexta, nada mudava no céu, ou na sua cabeça. O telefone não tocava.

Correu e pôs o café pra passar, enquanto se apressava no banho. Logo, muito cedo, deveria estar em mais um compromisso, longe, de si, do seu sonho, de uma vida que pensou ser diferente depois que tudo tivesse mudado. As coisas mudaram, ela também e tudo ficou assim, a repetição do dia, frente a uma opaca linha de chegada que nada trazia além da certeza que o tempo passa.

Tomou um gole de café, não comeu pão – se achava acima do peso – e projetou-se hall a fora para pegar o elevador. Amanhã é sábado, talvez se esqueça de lembrar que seu telefone poderia tocar.

quarta-feira, 20 de março de 2013

quinta-feira, 14 de março de 2013

Mais uma tattoo



Então, num súbito, ela sentia-se radiante frente a ele. Não tinha mais medo de sua nudez, nada de seu corpo a envergonhava, nem era muito gorda, nem muito magra, seus pelos, peitos, ancas estavam lá como se antes de toda vida sempre estivessem.

Enquanto mirava os seus olhos, sabia que daquele instante para frente começava a dominar um novo jogo, no qual todos ganhavam e todos perdiam. Gostou daquela sensação, não era mais apenas uma garotinha, mas, mesmo parecendo uma, tinha um poder infinito, podia desintegrar meia galáxia se quisesse, piscando apenas um olho. Naquele momento que se virava, podia pô-lo ao avesso com um leve requebrar, agora sabia como funcionava.

Mais nua do que nunca estivera, ao mesmo tempo, escondia tanto que nem mesmo o menor grão de luz podia penetrar pelas brechas infinitesimais de seus pensamentos. Ela estava além de si mesma, porque agora sabia que havia algo de si que tinha conquistado para toda vida. Ele a olhava com desejo, porém, certamente, absurdamente alheio às intensas revoluções internas pelas quais passava a cabeça daquela garota.

Numa sequência de segundos eternos, ela deus alguns poucos passos em direção à cama daquele quarto de motel barato. Ele não sabia. Ela estava se encontrando, e ele...  Estava perdido.

Ela fez uma tatuagem em alusão a esse momento. Era uma tattoo engraçada, ninguém nunca entendeu. 

E ela nunca explicou.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Um turno a mais


Chegou do seu turno ao final da madrugada. Ela estava, como sempre, acordando pra ir trabalhar, pegar o primeiro trem. Tomaram café da manhã juntos, ele trouxe o pão da padaria que ainda mal abrira. Quentinhos, o pão, o café, as mãos entrelaçadas. 

Pouco se falaram, parecia que a falta de tempo, o cansaço, a saudade impediram todo o resto. Apenas se olharam, assim, de mãos dadas, braços estendidos através da pequena mesa branca de fórmica. Não puderam demorar-se mais. Já à porta, um beijo rápido, intenso. Um beijo de saudade, de paixão, resignação e revolta, hora do adeus, hora de perder um amor para o mundo. 

Já no trem, apertada entre centenas de outras almas vendidas à vida pra levar, lembrou-se, hoje fazia três anos que se conheceram. O trem seguia rápido rumo ao Centro, devorando cenários de uma periferia sem sonhos, casebres de zinco, muros sujos, terrenos baldios e córregos esquecidos – mau cheiro. 

Adoraria poder ir ao cinema com ele naquele dia.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Amanhecer (Bríggida Lourenço, 18/06/12)*

Pela Janela (15/06/12)

Poderia falar aqui de meus problemas, sobre meu dia, minhas noites sem sono
pensando em você, na chuva que não para de bater em minha janela...
Mas não posso, não posso citar teu nome,
Você não gostaria. Você teme muitos sons.
Você teme que outras pessoas ouçam seu nome... Saindo de minha boca.
Algo mais intimista... E a chuva insistente.
Não quero falar... Quero sossego.

Não direi, talvez nunca o diga, nem no vem e nem no vai.
Agora me lasquei. Já é tarde para tudo isso. Sinto falta do cheiro do café.
Fios de cabelos caem, é preciso dormir, isso me incomoda... O cheiro da chuva e não do café.
Se eu fosse eu, amanheceria outra.
Sussurrei que sim, agoniada... Vou dormir.
Falta o som, da chuva, da música, do riso... Falta sono.
Falta sorte? Ou falta amor?

* Fonte: AQUI

Nota: Bríggida Lourenço, professora da Universidade Estadual da Paraíba, escreveu esse texto na noite do dia 18/06/12. Foi assassinada pelo ex-companheiro em sua própria casa na manhã do dia 19/06/12.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Em um abraço

Josef Kunstmann

Pensou mais uma vez em dizer-lhe tudo no momento em que se abraçavam apertado. Mais um daqueles encontros imprevistos. 
Novamente, todos os segundos nos quais seus braços apertavam firmes um ao outro, remetiam aos tantos anos de cumplicidade, risadas, dores e, por fim, distância. Pouco tempo para sentir seu coração pulsando por cada ano que estiveram juntos, as batidas aceleradas pelos segundos ali, de volta ao peito um do outro. 
Casa pode ser o sinônimo de lugar onde se pode sonhar, mesmo que o sonho tenha passado, compartilhá-lo é um abrigo. Estacionamento lotado do shopping. Seguiram então, sorrisos no rostos, cada um para seu carro.
Tinham que partir. Quando se veriam novamente? 
A única resposta para eles é que amanhã seria outra segunda feira.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Woody Allen Pode Esperar



Acordou de ressaca em pleno meio da semana. Caminhou cambaleante até o banheiro e fixou-se em sua própria imagem no espelho, com pouco gosto, diga-se de passagem. Alguns urgentes goles d’água da torneira e o esforço seguinte de apertar a pasta na escova de dente. Pensou em quanto deveria estar péssimo, pois, por dentro, sentia-se a própria soma de todas as promessas de melhoras de si mesmo quebradas – pra toda a eternidade.
 
Manhã alta já. Artista em crise criativa de si mesmo tentava elaborar com muito esforço um roteiro mínimo dos eventos ocorridos na noite, madrugada, começo de manhã passados. As pistas do que havia ocorrido estavam espalhadas em sua cabeça assim como pelos lados no quarto, via agora, sandálias, uma meia calça, calcinha – tipo shortinho, por sinal, um indicativo de originalidade em meio a um mundo de fios dentais sem identidade -, e, finalmente, ela, sobre a cama!

A desorientação cedeu instantaneamente a uma recuperação de flashes e recortes de falas, movimentos, gestos e... sons. A novata do setor jurídico! Dormia ainda da forma que bem lhe cabia, esparramada feito uma gata mesmo que era, a cama mal lhe cabia. Parecia muito bem, dormia como se estivesse em casa.

“Nossa, aquelas caipiroskas e o papo sobre Woody Allen ontem à noite...”. “Ela não gosta de Wood Allen!!! Não pode estar certo”.

Nesse momento, ela começou a se mexer e fazer menção de acordar. Ele voltou correndo para a junto da gata manhosa estirada na cama. Woody Allen fica pra hora do café mais tarde. 

Bem mais tarde.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Anotações Para Um Amor Que Se Retirou



Tinha escrito algo sobre ela num caderninho de notas já gasto, desses de arame, que se compra em armarinhos. Era apenas mais uma observação: como a amava depois de todos esses anos juntos. Feita despretensiosamente enquanto ela se arrumava antes de vir deitar-se. 

As frases no caderno não traziam nada de especial, nada que pudesse virar poema, prosa, filme. Apenas escrevia quatro ou cinco linhas sobre como era bom estar com ela, todos os dias, ao longo de tantos anos. Na última frase, lembra ainda quando se viram pela primeira vez, ela sentada, leve, linda e morena, alheia a tudo num banco do pátio da faculdade. 

Ela pediu-lhe para ler o caderno, ele disse que não, apenas no dia seguinte, era surpresa. E fechou-o. Ela veio até a cama, deitou-se, deu-lhe um beijo suave na boca e tratou de aninhar-se em seu peito, como sempre gostara de fazer e abrigar-se do friozinho da chuva que começara a cair forte lá fora. Dormiu instantaneamente. Na manhã seguinte comemorariam bodas de ouro. Não haveria festa, não tiveram filhos, mas sairiam para almoçar fora, pasta, como ela mais gostava. 

Amanheceu, a chuva parara, dia perfeito. Ele levantou-se cedo e, aproveitando-se que ela ainda dormia, preparou e trouxe-lhe o café na cama. Deu-lhe um beijo leve na testa. Não houve resposta. Ela deixara-o em algum momento da noite, assim, serenamente, como gostava de levar a vida. 

Enquanto as primeiras lágrimas corriam lentamente pelos seus olhos, pegou o caderninho sobre o criado mudo e leu para ela as últimas linhas de suas anotações sobre o seu amor, como era amá-la depois de todos esses anos...

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Ainda a Praia



Então, depois de muito tempo, do nada e a queima roupa, ela perguntou, como se previsse um próximo conto, "por que você não me levou naquela praia?". Ele respondeu em silêncio, pra si, "talvez a praia ainda não estivesse pronta pra eles". 
Mentira, sabia, a praia sempre estivera. Permaneceram em silêncio. 
Voltaram a falar dos casais que passavam de mãos dadas pelo calçadão naquele fim de tarde de verão.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

E Outro Fim de Festa

Frevo (Portinari, 1956)



Era fevereiro, bebê. 

Minha mão na sua mão pelas ladeiras, nós dois perdidos no calor que não se sabia mais vir de dentro, ou de fora, daquele Sol que cozinhava nossas moleiras. Derretidos em suor, quando seu perfume compunha com o frevo o refrão de que você me queria. 

Nem precisava mais fitar seus olhos, pois já me haviam sequestrado, depois de devidamente dissolvido pelos seus raios negros.  Bem na hora, hora exata que você me olhou daquele jeito e me beijou. 

O frevo entrou em nossas vidas pra sempre. E continuou tocando em minha cabeça, mesmo depois que lhe perdi de vista, na dobra de uma esquina qualquer, sei lá porque desses motivos que não importam, pouco antes do bloco parar de tocar. 

Era fim de mais um carnaval. Sentei-me na praça com uma última cerveja e me vi de repente com um sorriso bobo. Havia uma graça em ver as pessoas indo embora no carnaval. Nunca se sabe o que virá. Talvez você um dia leia isso, talvez um dia nos encontremos em outro carnaval. “Saudade”, lembrei-me, tava na letra daquele último frevo que ouvimos antes de você partir.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Fevereiro, Novamente



Fevereiro novamente. Janela aberta, dava para ouvir o ensaio da bateria do bloco de maracatu que passava – O carnaval já estava à porta. Um ano atrás, esse mesmo calor, cheiro dos benjamins na calçada, uma noite parecida e eles foram à rua na hora que o bloco passou. Assim, pararam de fazer o tudo que os distanciavam de sorrir e se deixaram. Sorriram e dançaram, não havia mais nada para se importar. 

Cada rua séria ganhou um tom de alegria a cada volta que davam por um novo quarteirão. Hoje, essa euforia não apareceu. Não entendeu bem em que momento perderam-se nos rodopios de uma dessas cirandas da vida, ou em alguma esquina dos sentimentos que mudam o compasso. O bloco passava novamente, mas ela não estava lá, eles não estariam nunca mais. 

O carnaval era alegria, pois superação intensa de todas as tristezas, assim, como o branco é soma de todas as cores. Saiu de casa e seguiu o bloco outra vez. Nesse instante que sua vida era o branco impessoal dos dias pra levar, nada lhe caia melhor do que perder-se em todos os enredos imaginários que o samba operava em sua cabeça. 

Estava triste. 
Estava pronto para o carnaval.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Entre Postais e Perfumes de Viagem


O último envelope que ela lhe enviou trazia um perfume estranho, diferente de tudo que já tinha experimentado até então. Sim, mesmo quando não era sua intenção o papel sempre carregava algo dela consigo: uma amostra de ar, de pele, de espaço infinito, daquele abismo que olhava sem cansar, feito menino besta frente à porta do cinema na estreia da continuação daquela trilogia. 

Lembra que olhou com ansiedade e lentamente o envelope azul, tudo certo: letra, selo, carimbo... Internacional. Havia muito tempo que o silêncio tornara-se o único rastro de elo entre eles, o caminho labirinto onde ninguém mais conseguia se vir, por mais que se gritasse, por mais próximo que lá estivesse. Pausa. Veio-lhe a cabeça instantaneamente, uma sensação de estar num labirinto, parecendo com o sentimento de perda e a agonia da ausência, sem rumo somado à certeza absurda de que há algo por detrás dos muros de blocos escuros.

Voltou à carta. Abriu devagar o envelope. Dele se mostrou a mesma destrutiva caligrafia, bela como um cadafalso, dizendo aquelas coisas que ninguém mais precisa ouvir depois do tempo que tudo separa e tudo acalma. Preferira nunca ter aberto aquele postal com a imagem de singelos pubs sob a neve. Nevou em seu coração, mais uma vez.
Quase ouviu sua voz dizendo qualquer coisa doce em seu ouvido em meio a uma caneca e outra de cerveja escura e às densas colunas de fumo que descreviam voltas sinuosas até o teto. O texto dizia que estava em algum país distante, e perguntava como ele estava. Nessa hora, apenas o frio ficou. 

 Depois de uns dias entendeu o perfume que trazia o envelope. Chamava-se, distância, tempo, indiferença. O avesso de tudo que experimentaram. Ela, em algum lugar frio lhe mandando postais azuis sobre o nada que havia entre eles. Ele, criando um lar no qual seu coração descansa para o próximo momento quando não mais houver paz em sua vida.
Não lembra se guardou o postal. 

Em seguida, preparou um café, abriu seu e-mail, havia uma bela mensagem de alguém muito querido tambem comentando sobre uma viagem recente para um país próximo. O e-mail não trazia perfume nenhum, mas quase sentiu todos os aromas de tudo que ela lhe contava ter visto por lá. 

Sorriu pra si. 

Nessa noite, sonhou que o porvir tinha cor amarela e cheiro de café. Caia muito bem com as notas amadeiradas daquela morena.